Transformação digital

Desde sua criação, o SUS enfrenta o desafio de integrar um país continental, com profundas desigualdades regionais, em um sistema público, universal e equânime. As Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) emergem, nesse percurso, como ferramentas estratégicas para garantir a continuidade do cuidado, qualificar a gestão e democratizar o acesso. Mas esse caminho tem sido construído passo a passo, ao longo de décadas.
Nos anos 1990, o Brasil começou a estruturar um conjunto de sistemas nacionais de informação em saúde. Foi nesse período que nasceram dois sistemas importantes: um voltado à vigilância dos nascimentos e outro que organizava os dados da atenção básica.
Também se consolidaram os sistemas de informação ambulatorial e hospitalar, com ênfase no faturamento e controle de pagamentos e dados administrativos. Era o início de uma cultura de dados ainda centrada na lógica de produção de serviços, com baixa articulação entre os diferentes pontos da rede.
Na década de 2000, o setor privado, com mais recursos, avançou rapidamente na implementação de sistemas de gestão hospitalar completos, que incluíam os prontuários eletrônicos. No setor público, o surgimento do Cartão SUS representou uma tentativa pioneira de identificar os cidadãos no sistema, visando qualificar a informação e construir linhas de cuidado.
Ainda que com limitações técnicas e operacionais, o Cartão SUS já apontava para uma diretriz fundamental: a centralidade do sujeito. A informatização, no entanto, ainda era incipiente e desigual, concentrada em grandes centros e limitada a sistemas locais desconectados entre si. A falta de infraestrutura e a escassez de profissionais de TI eram grandes desafios. Essa década semeou o debate sobre a proteção de dados pessoais.
Foi nos anos 2010 que o País avançou significativamente no campo das TICs em saúde. A implantação do Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC) na Atenção Primária à Saúde (APS) representou um salto qualitativo na coleta, organização e uso das informações clínicas e administrativas. Pela primeira vez, foi possível registrar longitudinalmente o cuidado ofertado aos usuários. Em 2013, a estratégia nacional ganhou força, com incentivos federais e crescente adesão dos municípios.
A partir de então, a digitalização dos serviços começou a se consolidar como política pública. A criação da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) colocou em marcha a ambição de um sistema interoperável, seguro, com governança pública e respeito à privacidade. Não se tratava mais apenas de informatizar, era também necessário integrar, compartilhar e gerar inteligência em saúde.
A década de 2020 é marcada pela consolidação da RNDS como repositório nacional de dados de saúde. A pandemia de Covid–19, com seus efeitos devastadores, acelerou a adoção de ferramentas digitais: o Conecte SUS tornou-se uma vitrine de acesso aos dados vacinais, laboratoriais e de atendimentos, fortalecendo a transparência e o empoderamento dos cidadãos, permitindo acesso às informações de saúde na palma da mão. Simultaneamente, expandiram-se iniciativas de telesaúde, fundamentais para garantir o cuidado em regiões remotas e em contextos de restrição de mobilidade.
Experiências robustas de interoperabilidade em um nível avançado surgiram em lugares como Recife e nos hospitais universitários federais da Ebserh, mostrando que os dados podem, de fato, se “conversar” em diferentes serviços, rompendo a lógica de ilhas de informação.
O SUS começa a trilhar o caminho da Inteligência Artificial em saúde, com o uso de dados em tempo real para vigilância, planejamento e gestão estratégica. Além disso, a IA foi incorporada à Política Nacional de Informação e Informática em Saúde, abrindo um novo leque de possibilidades para a saúde. A criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital no Ministério da Saúde e o lançamento do Programa SUS Digital solidificam essa agenda de transformação.
TICs são muito mais que ferramentas técnicas. Elas expressam concepções de cuidado, modelos de gestão e disputas políticas sobre os rumos do sistema.
Cabe agora aos gestores do SUS continuar a jornada de transformação digital, ampliando o acesso, melhorando a qualidade do cuidado e garantindo que a tecnologia seja uma aliada poderosa na promoção da saúde para todos os brasileiros. •
Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Transformação digital ‘
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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