Um samba em nome da justiça

Para a maior campeã do carnaval carioca, consciência ambiental dá samba. Inspirada na Carta da Terra, a Portela decidiu que, em 2026, sua escola mirim, a Filhos da Águia, vai levar à Marquês de Sapucaí o enredo Máscaras da Justiça, que propõe aos jovens de todo o Brasil uma reflexão sobre justiça socioambiental.
A garotada da centenária escola de samba azul e branco de Oswaldo Cruz vai celebrar na avenida os 25 anos da emblemática declaração internacional – inicialmente discutida no âmbito das Nações Unidas e depois adotada pela sociedade civil – que traz um conjunto de 16 princípios “para guiar a humanidade rumo a um futuro ambientalmente sustentável”.
Os Filhos da Águia da Portela e a Carta da Terra têm quase a mesma idade. Criada em 2001, um ano após o lançamento do documento, a escola mirim quer aproveitar a dupla comemoração para mostrar ao grande público como a questão ambiental transcende a proteção ecológica.
No enredo e na avenida serão debatidos também alguns temas caros à comunidade portelense e a muitas outras espalhadas pelo Brasil, como racismo, direitos humanos, violência ambiental, erradicação da pobreza e desenvolvimento econômico local.
A ideia de levar essa mensagem aos amantes do samba surgiu da parceria entre a Portela e a Associação Terrazul, tradicional organização não governamental que é filiada à Carta da Terra Internacional e uma das fundadoras da Teia Carta da Terra Brasil.
Coordenador nacional da Terrazul, o ambientalista Pedro Ivo Batista ressalta que crianças e jovens da Portela vêm há algum tempo dialogando, com base na Carta da Terra, sobre racismo ambiental e o desenvolvimento histórico do subúrbio carioca. “Tem sido uma oportunidade para expandirmos a dimensão cultural e histórica desse documento importantíssimo”, explica.
No primeiro domingo deste mês, os 25 anos da Carta da Terra foram comemorados em um evento realizado na Quadra Clara Nunes, um dos corações onde pulsa o samba carioca e endereço oficial da Portela no Rio.
A ocasião também marcou o encerramento do primeiro ciclo do projeto “Esperança num Mundo Melhor – Juventudes do Subúrbio Carioca no Combate ao Racismo Ambiental”, parceria entre a escola de samba, por intermédio da Oficina Paulo da Portela, e a ONG que, com apoio do Fundo Casa Socioambiental, promoveu oficinas formativas com crianças e jovens. O processo resultou na gravação de um minidocumentário e terá seu ponto alto com o desfile da Filhos da Águia em fevereiro do ano que vem.
“No caso do subúrbio carioca, falar sobre a luta socioambiental é restabelecer conexões com um cancioneiro que já refletia as transformações ambientais e sociais antes mesmo dos grandes eventos do movimento socioambiental mundial”, afirma Emanuel Antunes, coordenador da Terrazul no Rio de Janeiro.
O documento internacional serve de base para a discussão sobre a luta socioambiental
Antunes saúda a parceria com a Portela e ressalta a importância de se falar sobre esse tema de forma tão direta com a população suburbana do Rio. “A defesa por justiça socioambiental tem conexões profundas na história do povo negro brasileiro”, prossegue ele. “A população negra foi e continua sendo, com os povos originários, a mais afetada pela devastação ambiental, as mudanças climáticas e a urbanização desigual do País.”
O lançamento do enredo aconteceu no Parque Madureira e, além da apresentação da escola mirim, contou com o plantio de um pau-brasil. Em nota, a Portela afirma que o desfile da Filhos da Águia unirá “conscientização e criatividade, fortalecendo o papel da educação e da cultura como caminhos para a transformação social”.
A proposta da escola é, por meio do samba, promover um debate coletivo que valorize a identidade cultural do povo negro, permitindo a “revitalização da memória sobre o subúrbio” e o enfrentamento de desafios históricos impostos a essa população.
Rainha de bateria da Portela e diretora de Cultura da escola mirim, Bianca Monteiro diz ser “emocionante ver tanta consciência brotando em Madureira”, com crianças e jovens falando de justiça, meio ambiente e cuidado com a vida: “O enredo que a Filhos da Águia vai levar para a Sapucaí não é só um tema: é mensagem, é sonho coletivo, é compromisso com o planeta”.
Diretor de Carnaval da Filhos da Águia, Leonardo Fartura afirma que a escola acredita “na força da educação, da cultura e da consciência social como ferramentas transformadoras”. O enredo, diz ele, teve origem em uma ideia que o carnavalesco Luciano Moreira vinha amadurecendo há algum tempo, em rodas de conversa realizadas.
Para Pedro Ivo Batista, o samba é o elo a unir a luta socioambiental e as vivências, costumes e histórias da comunidade que constrói o carnaval carioca. “Ele dá uma vivacidade ainda maior para o documento”, diz. “Ao mesmo tempo que transmite os princípios e diretrizes da Carta, o enredo soma a ela as experiências e a ancestralidade dessa comunidade tão pulsante.”
Emanuel Antunes lembra que o samba, ao longo de todo o século, foi um elemento central de conscientização da população negra. “Samba e consciência socioambiental sempre caminharam juntos”, diz. “Isso vem desde Paulo da Portela, com Cidade Mulher, passa por Paulinho da Viola, em Amor à Natureza, e chega aos nossos dias com essa nova geração de sambistas que pensa sua realidade através do batuque, da poesia e da partilha comunitária que o samba proporciona.” •
Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um samba em nome da justiça’
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