Ter filhos não me parece divertido (II)

No seguimento do meu artigo “Ter filhos não me parece divertido” fui convidado pela Rádio Observador para discutir o tema da demografia no programa “Contra-Corrente” de 29 julho último. Foi um programa interessante, no qual discutimos a temática da inversão demográfica e imigração. Escrevo este artigo no intuito de complementar este debate com algumas considerações adicionais e conclusões decorrentes desta discussão.
Há um decréscimo demográfico global, o qual não se circunscreve ao Ocidente e tem uma única exceção, a África subsariana, e as razões pelas quais as pessoas não têm filhos não são económicas. São pura prioridade pessoal. O problema são as consequências graves não só sociais, mas também económicas daqui decorrentes. Um dos fatores que motiva esta mudança de prioridades não é só o advento da pílula, como comentámos. Há razões mais profundas. Uma delas é o abandono da religião como matriz espiritual e cultural das sociedades contemporâneas. Mas explicará tudo?
Portugal vive hoje um paradoxo demográfico profundo. Somos um país que envelhece e perde população de forma natural. Mas, ao mesmo tempo, vemos os números da população a subir. Como é possível?
Em 2023, cerca de 24% da população tinha mais de 65 anos. A taxa de natalidade é das mais baixas da Europa—apenas 1,4 filhos por mulher. Para termos uma ideia, o mínimo necessário para renovar gerações seria 2,1. O saldo natural, ou seja, a diferença entre nascimentos e mortes, tem sido negativo desde 2009. Só em 2023, morreram cerca de 20 mil pessoas a mais do que aquelas que nasceram. Se dependêssemos apenas da população portuguesa residente, estaríamos a perder habitantes todos os anos. Mas não estamos. Pelo contrário — Portugal tem vindo a crescer em número total de habitantes, graças a uma vaga migratória sem precedentes. Em 2023, havia em Portugal cerca de 1 milhão e 200 mil imigrantes. Isso significa que mais de 11% da população residente é estrangeira (14,5% em 2024). É um número histórico — nunca tivemos tantos. E o crescimento foi muito rápido. Em 2015, tínhamos menos de 400 mil imigrantes. Ou seja, em menos de uma década, triplicámos o número de estrangeiros residentes.
Porquê Portugal? Porque oferece estabilidade, segurança, oportunidades de emprego em setores com falta de mão de obra — como a construção, os serviços, a agricultura ou os cuidados a idosos. E este crescimento veio quase exclusivamente da imigração. Ou seja, sem imigração, Portugal teria perdido habitantes nesse ano. E há mais: muitos dos imigrantes que chegam têm menos de 40 anos — ajudam a rejuvenescer a base ativa da população, a contribuir para a segurança social e a manter setores económicos em funcionamento.
Mas nem tudo são boas notícias. Este crescimento rápido levanta desafios muito sérios. Em primeiro lugar, o sistema de acolhimento não está a dar resposta. Cerca de 400 mil pessoas têm processos de regularização pendentes nos serviços de imigração. Depois, há questões de habitação — com muitos imigrantes em situações precárias, a viver em casas sobrelotadas ou exploratórias. E no mercado de trabalho, muitos imigrantes acabam em empregos mal pagos, sem contrato, ou com pouca proteção social. Há ainda riscos de tensão social se não houver políticas ativas de integração — nas escolas, nos bairros, na cultura.
Mesmo com este boom migratório, os demógrafos alertam: Portugal poderá voltar a regredir demograficamente nas próximas décadas. O INE prevê que, mesmo com imigração moderada, Portugal pode descer para 8,2 milhões de habitantes até 2100. E sem imigração, o cenário é ainda mais dramático — poderíamos cair abaixo dos 7 milhões. Ou seja: a imigração resolve o presente, mas não garante o futuro. É preciso criar condições para reter talento, integrar famílias e incentivar a natalidade, com políticas sérias e consistentes. Mas chegará?
José Manuel Fernandes dizia neste programa e, bem, que a regressão demográfica não é apenas do Ocidente. O mundo em geral está com taxas de natalidade baixíssimas e em franco decréscimo, destacando-se países que outrora eram campeões da natalidade, como a China, Coreia do Sul ou Índia. Já não são assim, há casos verdadeiramente alarmantes como o da Coreia do Sul, que tem a mais baixa taxa de natalidade do mundo, inferior a um filho por mulher. Projeções apontam para uma drástica queda populacional até 2072, cerca de 51 milhões para 36 milhões, se nada for feito.
Voltando a uma perspetiva internacional. Por que as pessoas não têm filhos? Referi o meu artigo anterior do Observador, em que questiono a razão económica como o principal motivador pelo qual as pessoas não têm filhos. Ao comentar a afirmação do humorista americano Seth Rogen, apresentei um estudo do Pew Research Center que corrobora o que digo. As pessoas não têm filhos, porque não querem. Porque não é prioridade para si e não por razões económicas. Trouxe para a discussão mais um estudo recente da Merck, em que se estimou que 1/3 dos jovens na Europa não quer ter filhos. Referi outras conclusões interessantes deste estudo. Estes jovens referem que não querem ter filhos porque: 1) prioridades pessoais; 2) questões económicas; 3) questões de falta de informação. 33% afirmam ter pouca ou nenhuma informação sobre os fatores que influenciam a capacidade de engravidar, enquanto metade dos inquiridos discutiu fertilidade com o seu médico. 70% defendem que o acesso à preservação da fertilidade em idades mais jovens daria mais liberdade de escolha. Também comentei que estes 70% provavelmente confirmam a tal “falta de informação”, pois preservar essa fertilidade, nomeadamente através de congelamento de óvulos e a procriação medicamente assistida numa idade mais avançada, não só não garante como tem taxas baixas de sucesso e altos custos. Veja-se abaixo o gráfico que ilustra esta constatação. Se os jovens atualmente adiarem a parentalidade para, digamos, depois dos 30 anos, existe apenas 27,7% de probabilidade de sucesso; se entrarmos nos 40, já perto de apenas 10%. Já para não referir que o problema não é só da mulher. A qualidade do esperma do homem, decresce com a idade.

Provavelmente parecia que falávamos um pouco à antiga, mas os números não mentem. Concluíamos que esta sociedade não quer ter filhos e isso apresenta uma grave ameaça à manutenção da espécie. Quando as consequências sociais se alastram às económicas, como disse no meu artigo anterior, a coisa pode ficar séria para os mais progressistas. Mas isto não é uma questão de “conservador” ou “progressista”. José Manuel Fernandes apontou o “individualismo” como motivação, eu fui um pouco mais forte no meu artigo anterior e referi “egoísmo”. Esta é uma questão de sobrevivência da espécie e “sustentabilidade”, este tema tão caro a esta geração. “Sustentabilidade” é satisfazer as necessidades desta geração e assegurar as das próximas gerações.
Concluí a minha parte do debate com dois tipos de recomendação para o nosso país: económicas e culturais. Nas económicas: são precisas melhores condições de trabalho nas áreas de necessidades do país (construção, agricultura, restauração e hotelaria, transportes e logística, tecnologias e serviços) mas também mais investimento em atração e retenção de talento nas áreas de maior valor acrescentado – inovação, indústria e tecnologia. É preciso também melhor gestão dos serviços de saúde e educação. Não é dinheiro, mas gestão.
Nas culturais. É vital uma melhor integração, digna e com mais sentido, dos imigrantes. Com regras. Interculturalismo não é multiculturalismo. São precisos valores partilhados – cultura – para haver integração.
Vivemos uma crise cultural/moral – que já ultrapassa o Ocidente. Os jovens (e não tão jovens como Seth Rogen) não querem ter filhos. Como podemos fazer com que as pessoas tenham mais filhos? Ficou a minha questão no ar para a segunda parte. Na segunda parte do programa, Miguel Morgado mencionou algo de muito importante. Provavelmente, mais que razões económicas ou altruístas que motivem as pessoas a ter filhos, o facto de se ter erradicado a religião da sociedade contribuiu e muito para a mudança de hierarquia de valores na sociedade. Lancei também a hipótese dos ciclos. À semelhança do aquecimento global, que alguns apontam como simples fruto de ciclos e não de atuação do homem, também o decréscimo populacional poderá ser um ciclo natural da nossa história. E a caminhar para onde? Reinvenção ou extinção?
Por fim, este é também um problema não só de egoísmo — ou individualismo, como quisermos — mas de falta de memória. Querer a “vida plena” ambicionada por tantos, sem um custo, é no mínimo, distração. Se hoje podemos ter uma vida plena ou sequer rir-nos ou divertir-nos como tanto gosta Seth Rogen, é porque alguém adiou a sua recompensa e sacrificou-se por nós. Não precisamos ser religiosos, procriar é um imperativo da espécie. Quando deixar de ser, não caminhamos apenas para a insustentabilidade económica e social, mas para a extinção.
observador