França: de novo o abismo

Como pode um país lançar-se voluntariamente ao abismo? Não é tarefa fácil perceber, mas, como sabemos da História, a França não receia revoluções. Está tecnicamente falida (mas recusa-se a admiti-lo), possui uma situação social fragilizada por uma imigração que não se integra e encontra-se envolvida em conflitos geoestratégicos que podem desembocar em guerras mundiais. E, no entanto, caminha alegremente para o caos político. O problema para os outros países europeus é que esta aventura francesa vai, inevitavelmente, implicar com o seu destino. Por isso, é também legítimo perguntar: como pode um fundador de uma associação de países – que nasceu para melhorar a situação dos seus membros – colocar em risco essa força colectiva? Porque é isso mesmo que está em jogo. O que se irá passar? Sabemos que o futuro nunca deixará de nos surpreender. Mas será que do passado poderemos tirar algumas ideias que expliquem o que está em causa?
Na pátria do racionalismo, seria de esperar que a emoção se submetesse à razão. Mas no caso da França, a oportunidade para uma boa luta é algo que não se quer perder, mesmo que os objectivos não sejam claros, que não existam forças próprias consequentes ou que não sejam considerados os riscos. Como diziam os romanos quando por lá andavam a criar o seu Império nascente, os celtas que habitavam no que hoje é a França, pareciam galos a lutar, qualificativo que ainda hoje honra os herdeiros de Astérix. Esta singularidade, que alia a procura de grandeza e a combatividade, marcará para sempre as tribos que se vão suceder no centro do Continente Europeu, amarrando os seus dirigentes ao cumprimento desses desígnios. Para o bem e para o mal, em França, os líderes cuja percepção pública fica abaixo das expectativas, acabam por ser confrontados pela revolução.
O espírito de singularidade combativa da França e o seu contributo na construção da História global não precisam de apresentações. Luís XIV é um exemplo glorioso do cumprimento desse mandato. Construiu um ecossistema cujos testemunhos de grandiosidade subsistem hoje nas pedras e nas letras, um património que é objecto de admiração global. Foi um Rei que dedicou as suas energias e os recursos que não tinha (deixou o país totalmente arruinado), na afirmação política e militar da supremacia francesa, em especial contra os seus vizinhos. Conteve o Império espanhol e a nascente Inglaterra, e manteve a Alemanha dividida em milhares de unidades independentes garantindo, assim, a impotência germânica face ao poderio de Versalhes. Morreu, tranquilamente, na cama, rodeado dos seus mais dedicados admiradores. No momento da sua morte, os gauleses estariam certamente esmagados, mas ainda assim, profundamente orgulhosos.
E se o seu bisneto Luís XV ainda conseguiu manter viva a chama da glória Solar, o neto deste já não teve essa competência ou sorte. Com Luís XVI, a magia deixou de funcionar e a situação económica impediu a realização das onerosas aventuras militares para responder às afrontas dos vizinhos. E a humilhação foi tal, que os seus constituintes – tanto as elites como o povo anónimo – consideraram-no inapto para o serviço. O trambolhão da Bastilha e do Período do Terror subsequente foram tão grandes, que ainda hoje se ouvem os ecos. Este foi, sem dúvida, um período charneira na História da Humanidade: o momento em que o modelo geral de organização, a monarquia hereditária de direito divino, é posto definitivamente em causa pelo princípio do exercício da vontade soberana dos indivíduos e pela existência de um Estado de Direito assente na lei. Com o tsunami político da Revolução Francesa de 1789, foram também abertas as comportas que condicionavam a expansão das novas ideias sociais e científicas que vinham amadurecendo desde o Séc. XVI e que vão gradualmente colocar um ponto final no mundo medieval. Os gauleses viveram confusos nesses tempos complicados, mas faziam História.
O caos revolucionário só será resolvido por Napoleão Bonaparte que vai conseguir impor, pela força, não só a administração da Europa a partir de Paris, como a aplicação prática de muitas das ideias revolucionárias, hoje património universal da Humanidade. Mas, para os franceses, ainda que não o assumam, o que Napoleão fez de mais importante, foi a demonstração da absoluta superioridade da França. Apesar da sua carreira ter sido meteórica, Napoleão cumpriu com inigualada glória o desígnio dos dirigentes franceses, pelo que a sua memória dourada subsiste intacta. Apesar de vencido, protegido pelo escudo invisível do seu prestígio, é poupado pelos vencedores seus inimigos e, tal como Luís XIV, morre tranquilamente na sua cama rodeado dos seus mais dedicados admiradores. Os gauleses estavam exaustos, mas orgulhosos e felizes.
A cura das muitas feridas deixadas em aberto pela revolução, e depois pelo Império Bonapartista, levou à reinstalação, no poder, da dinastia dos Bourbon, por imposição da aliança entre Ingleses, Russos e Prussianos, as potências que haviam derrotado Napoleão. Como curiosidade histórica conta-se que, quando os aliados vencedores se reuniram em Paris para decidir do futuro da França vencida, o Czar Alexandre da Rússia, admirador (apesar de tudo) da grandeza da ideia e da cultura francesa, pretendia que o novo Rei fosse um dos grandes generais de Napoleão, como forma de garantir a pacificação e a recuperação do país. Mas nas reuniões entre os aliados e as elites francesas para a procura de soluções governativas, um tal Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, convenceu o Czar de que a pacificação só seria possível com um Rei cujo direito não fosse objecto de disputa, pelo que se deveria convidar um Bourbon. Talleyrand continua assim a sua carreira política extraordinária, que o fez passar de Bispo e membro do Governo de Luís XVI, à participação activa na Revolução que matou o Rei, passando para ministro incontornável de Napoleão e depois ao Governo dos Reis Bourbon. Conta-se também que, quando um dia Luís XVIII o quis demitir, Talleyrand lhe terá dito: “Sire, vós estais enganado, fui eu que vos nomeei” e Talleyrand continuou no Governo. Na realidade, o novo mundo pós-Revolução era afinal estranho para os dois irmãos de Luís XVI – Luís XVIII e Carlos X – que reinaram de 1814 a 1830. Mas, apesar da mudança de condições sociais e políticas, a missão do Rei em manter a grandiosidade do país mantinha-se, e vai ser com Carlos X que a França se lança na conquista da Argélia. Só que, cegos pelo revanchismo monárquico, os Bourbon perdem apoio popular e são obrigados a partir para o exílio aquando da Revolução de 1830. O povo gaulês tinha, uma vez mais, assumido o controlo.
Vai ser chamado um novo Rei, Luís Filipe de Orleães, que reinicia o caminho da França em direcção à democracia, mas não vai conseguir seduzir os franceses nem o seu insaciável desejo de grandeza. Em consequência, com a Revolução de 1848, Luís Filipe abdica e parte para o exílio. Dizia-se na altura que o Governo estava tão fragilizado, que foi autorizado a dissolver-se… A depressão era generalizada.
Proclamada a II República, o primeiro Presidente eleito será Napoleão… um sobrinho de Bonaparte, que afirmava, candidamente, que só o seu nome era um programa político impossível de bater. Esta foi uma República de curta duração, pois o Presidente Napoleão convoca um plebiscito e reinstala um novo regime que classifica de Império, com ele próprio como o Imperador Napoleão III. Mas enquanto a Revolução Industrial e a exploração colonial iam enriquecendo o brasão do novo Imperador, e chefe da tribo gaulesa, a diminuição do domínio francês na Europa abriu finalmente caminho à unificação do mundo germânico. Esta unificação não aconteceu, como seria de esperar, à volta do Império de Viena, mas antes liderada pelo Reino militarista da Prússia com sede em Berlim. Napoleão III, refém do mandato popular para a afirmação da superioridade francesa, vai, irresponsavelmente, desafiar a Alemanha que aproveita a oportunidade para explicar aos franceses que o mundo mudou. Apesar do Imperador ter sido derrotado em 1870, o povo de Paris não aceita a rendição e assume a missão da singularidade e da independência gaulesa, avançando para a Revolução da Comuna de Paris. O resultado foi dramático para os revoltosos. Vencidos pelo próprio exército francês que não queria mais aventuras, os irrequietos gauleses vão ter muita dificuldade em recuperar.
Sobre as cinzas dessa Revolução nasce a III República, formalmente respeitadora do poderio germânico, mas que assume um programa revanchista de reinvestimento militar, que será posto à prova na I Guerra Mundial de 1914-18. Apesar da bravata militarista francesa – que reivindica ter conseguido a derrota e a humilhação da Alemanha na I Guerra Mundial – não fosse a intervenção americana no final da guerra e o resultado deste tira teimas franco-germânico teria sido bem diferente. Esta será porventura a primeira grande vitória militar virtual do século. Os gauleses tinham redescoberto a poção mágica.
Após as celebrações da vitória de 1918, os franceses não se prepararam adequadamente para a desforra que Hitler lançou nos anos 30 e para a qual galvanizara toda a nação germânica. De facto, entre as guerras mundiais do Séc. XX, os franceses substituem o reflexo gaulês contra o inimigo externo pela guerra política interna e, divididos, acabam vencidos militarmente por Hitler em 1940. Mas desta vez a derrota não alimentou o espírito de luta dos gauleses que acabaram, na sua maioria, por normalizar mentalmente a submissão a um invasor sanguinário e insaciável. A salvação moral da França em 1945 não vem (como se irá fazer crer mais tarde) da vitória protagonizada pelas multidões de guerreiros gauleses, mas foi antes conseguida na secretaria por um militar que se recusou a obedecer ao Governo colaboracionista e fascista de Vichy e que manteve acesa a chama da galhardia gaulesa. Com a benevolência dos ganhadores da Guerra – americanos e ingleses – o futuro general De Gaulle vai conseguir um dos maiores êxitos militares virtuais de toda a História: a França passa de escrava submissa de Hitler, a co-vencedora da II Guerra Mundial. Afinal, a verdadeira e legítima França, os reais herdeiros dos gauleses, estavam reunidos à volta de um líder que fazia discursos em Londres. Esta foi uma dose gigante de poção mágica.
Com a paz americana vieram os gloriosos anos da reconstrução, a mobilização entusiasta de vontades, o crescimento económico, mas também a perda do Império Colonial. Os franceses eram agora simpáticos obreiros de uma epopeia de progresso económico na Europa. Pelo caminho ficou a IV República parlamentar, apeada popularmente em 1958, em resultado das desventuras militares coloniais. Também dispensado pelo povo em 1969 foi o próprio fundador da V República, o General De Gaulle, apesar dos êxitos políticos e económicos que obteve. A sua tutela paternalista tornou-se insuportável aos irrequietos guerreiros.
Nos anos 70 começam as complicações internacionais com as crises do petróleo, a par do aumento das despesas com o Estado Social, que anunciavam continuar a crescer. Para não ferir a irritabilidade gaulesa, os responsáveis políticos preferem negar que há problemas e assumem que o Estado consegue resolver tudo, sem ferir privilégios, nem pedir sacrifícios. O resultado foi ter-se conseguido manter a paz nas hostes gaulesas, mas sempre com alguma dificuldade. E como na realidade não havia nenhum milagre dos pães, o resultado desta benevolência aparecia na contabilidade da dívida pública. Em 1974, último ano até à data sem défice do Estado, a dívida pública era de 20% do PIB, mas, a partir daí, cada Presidente vai assinando, ao sair, uma herança crescente: Giscard D’Estaing 22%, Mitterrand 55%, Chirac 64%, Sarkozy 85% e Hollande 98%. Macron, que tentou, mas não conseguiu diminuir o custo das pensões, vai à data com 112%, contabilizadas as concessões aos gillet jaunes e os custos com o Covid.
No entanto, se ouvirmos hoje os dirigentes da oposição, todos afirmam ser necessário aumentar as despesas com a saúde, com a protecção social e com os subsídios às actividades económicas politicamente sensíveis, como a agricultura. Mas recusam liminarmente o aumento de impostos e da idade da reforma. A fé na magia parece permanecer intacta. Visto de fora, não se consegue entender o que querem os partidos franceses. Mas o tempo dos milagres parece ter acabado.
Neste momento temos uma situação que repete o que já aconteceu várias vezes no passado: um Chefe de Estado altamente impopular, um Governo autorizado a dissolver-se, um Parlamento disfuncional, uma crispação política extremada e uma situação financeira muito grave. Mas desta vez falta desesperadamente um fio condutor de vontades para lutar por uma solução comum. Falta generosidade para partilhar o esforço indispensável. E sobra a permeabilidade aos interesses das potências inimigas (são três), que querem de uma vez por todas, acabar com o protagonismo da Europa.
observador