A amnésia intermitente: jantares de luxo e jejuns de memória

Em Portugal, a política e a justiça transformaram-se num teatro onde a desmemória é a estrela principal. José Sócrates, quando questionado sobre um jantar com Ricardo Salgado; o “Dono Disto Tudo” do império Espírito Santo, respondeu com hesitações, como se não soubesse se esteve presente ou não. Não recordar um encontro com o homem mais poderoso da banca portuguesa é, no mínimo, um insulto à inteligência dos cidadãos. É aqui que surge a ironia: a estratégia da “falta de memória” parece ter-se convertido num jejum intermitente de lembranças. Sócrates não se esquece de tudo, esquece apenas o que lhe convém, saltando recordações como quem salta refeições.
O “não me lembro” tornou-se o bordão predilecto dos políticos portugueses encurralados em processos judiciais. É uma arma de defesa perfeita que não confirma nem desmente. É como uma cortina de fumo que obscurece a verdade e prolonga processos até à prescrição.
Ricardo Salgado, por sua vez, sofre do mesmo mal selectivo. A memória nunca lhe falha quando se trata de milhões; mas jantares, reuniões ou encontros comprometedores desaparecem misteriosamente do seu arquivo mental. É uma epidemia de amnésia conveniente, restrita àquilo que poderia incriminar.
Para qualquer português comum, estas desculpas são ridículas. O povo lembra-se do que comeu ontem porque teve de contar os cêntimos no supermercado. Já Sócrates, com as suas casas em Paris e a vida de luxo, afirma não se lembrar de um jantar que representa uma teia de interesses e favores. É o esquecimento como insulto, como quem olha para o povo e lhe diz: “Engulam lá esta.”
Vivemos numa era em que o jejum intermitente se popularizou como método de saúde. Milhares de portugueses praticam-no para controlar o peso e equilibrar o corpo. Sócrates e Salgado também parecem adeptos, fazem jejum de memória, lembrando-se de uns episódios, esquecendo-se de outros e assim vão saltando recordações como quem salta refeições.
Só que este regime não emagrece nada; pelo contrário, engorda a desconfiança e a indignação do povo. Enquanto Sócrates jejua da memória, milhões de portugueses jejua(m) literalmente à mesa. A inflação corrói os salários e a precariedade empurra famílias para escolhas dolorosas. Muitos sabem bem o que é saltar refeições; a “amnésia intermitente” das elites é ainda mais cruel neste contraste onde quem tem fartura esquece, mas quem tem fome lembra-se sempre.
A memória é mais do que uma função cognitiva; é a essência de uma nação. José Sócrates pode continuar a jejuar da memória, Ricardo Salgado pode seguir-lhe o exemplo, mas Portugal não deve cair nesse regime. Precisamos de recordar cada escândalo, cada traição e cada jantar negado. Só assim construiremos um futuro em que a política não é um banquete só de alguns, mas uma refeição para todos.
Em última análise, a amnésia intermitente de Sócrates é a metáfora da nossa tragédia nacional: líderes que se esquecem do povo e um povo que, demasiadas vezes, se esquece de exigir líderes à altura da sua história. Quebremos este ciclo, não com jejuns de memória, mas com a fome insaciável de justiça, verdade e dignidade nacional.
observador