São Vicente depois da tempestade: lições para Cabo Verde e para o mundo. Imagens desoladoras e um relato na primeira pessoa

Bastaram cinco horas de chuva para expor anos de más escolhas urbanísticas. O que parecia seguro revelou-se frágil. A água não pediu licença — entrou, levou e deixou um recado: ela sempre volta.
Escrevo ainda com os pés sujos do barro que se entranhou nestes dias no Mindelo. Ainda com a emoção à flor da pele. Ainda com o cheiro da primeira manhã, quando, depois de uma noite de trovoada e alvoroço, pus os pés no chão e senti água. Água onde não devia haver. Água que entrou sem pedir licença, levando o que pôde e o que não devia.
Abri a porta do quarto inundado e encontrei ruas lamacentas, como se a cidade tivesse acordado de ressaca. Era o rasto de uma tempestade que, na sua pressa, derrubou muros, redesenhou esquinas, apagou caminhos.
Ontem mesmo tinha-me despedido da Praia da Laginha com um “até já”. Hoje, ela não estava mais lá — ou pelo menos não como a conheci. Adormeci com a música desta cidade que vive em festa. Acordei com o silêncio pesado do barro.
Na madrugada de 11 de agosto, em apenas cinco horas, a tempestade tropical Erin despejou 192 milímetros de chuva sobre São Vicente — mais do que a média de um ano inteiro, que ronda os 127 a 141 milímetros. Mindelo, que na véspera era luz, música e calçada seca, transformou-se em lama e destroços. Ruas viraram ribeiras, casas tornaram-se barragens improvisadas e a Praia da Laginha desapareceu, arrastada pela torrente.
Vidas foram perdidas, até ao momento 14 mas ainda sem número final. Entre as águas castanhas e os destroços, gente anónima remexia no que sobrara, tentando salvar comida e bens ainda em bom estado. No meio do caos, flutuavam garrafas de plástico, pequenas e grandes mas numerosas, como se fossem a assinatura mais cruel e duradoura daquilo que chamamos desenvolvimento — um retrato de consumo e desperdício que nem a força da água apaga.
Não era só a chuva. Era o desenho da cidade. Casas que se levantam onde antes corria um rio seco. Ribeiras que só parecem mortas até ao dia em que, num relâmpago, ressuscitam para lembrar quem manda. A pressa de construir e a falta de planeamento urbano traçam um mapa invisível de tragédias anunciadas.
Uma pessoa de mais idade contou-me que ficou chocada quando voltou, depois de anos como emigrante, e viu casas construídas nos leitos secos das ribeiras. “Antigamente todo o vale era verde, desde o Monte Verde até ao Mindelo. Na época das chuvas, tinha água e produzia-se alimento. Agora resolveram construir. Esqueceram que os leitos das ribeiras são para a água e as estradas para a gente.”
A famosa Praia da Laginha foi alterada na sua configuração em 2013, aquando das obras do novo acesso norte ao Porto Grande. Foi alargada em cerca de 150.000 m³ de areia, ganhando 50 metros de extensão e passando de 350 para aproximadamente 500 metros de comprimento. Paralelamente, construiu-se um calçadão de 360 metros, ligando à marginal e valorizando o espaço urbano. Foram colocados tubos de escoamento de águas pluviais — mas nada deu resposta ao caudal daquela madrugada. A areia colocada foi devolvida ao mar, deixando a praia desfigurada.
A primeira resposta foi a solidariedade. Gente com pás, vassouras e baldes nas mãos, tentando devolver ordem ao que restava — limpando casas, passeios e ruas, separando o que ainda podia ser salvo do que já não tinha retorno. Na zona do mercado, encontrei-me com duas pessoas que, como eu, observavam o lamaçal e o amontoado de destroços em que se tinha transformado aquele espaço de vida. Um deles, com a voz pesada, disse apenas: “Que catástrofe”. E depois acrescentou, quase num desabafo: “Culpa de quem construiu nas ribeiras. Mas mais culpa tem quem autorizou. Esse é o ponto que prece esccapar— o planeamento de uma cidade que respeite a natureza, e não que a desafie.”
O barro que ficou depois da água é mais do que terra molhada. É memória. É prova. É alerta. E, se quisermos, pode ser também o início de outra história — uma história em que aprendemos com a paisagem, devolvemos espaço às ribeiras e construímos como quem sabe que o próximo dilúvio pode estar mais perto do que parece.
Este pode muito bem ser o novo “normal”. Tal como os verões acima dos quarenta graus se repetem em Portugal, aqui também as alterações climáticas deixaram de ser um alerta distante para se tornarem realidade diária — por mais que alguns insistam em minimizá-la. Pelas ruas, ouvem-se frases ditas com espanto e desalento: “Em tantos anos de vida, nunca vi nada assim em São Vicente.”
Mas, enquanto a memória da enxurrada ainda está fresca, o progresso — ou aquilo que vendem como tal — espreita na forma de promessas de crescimento e voos low cost carregados de turistas. Turistas que chegam com a expectativa de encontrar tudo perfeito: limpo, confortável, previsível. Querem as mesmas lojas, os mesmos sabores, os mesmos hábitos que têm em casa. O mesmo modelo que, pouco a pouco, corrói Barcelona, Veneza e Lisboa, expulsando moradores e desgastando a alma das cidades. Aqui, quem conhece São Vicente teme que esse caminho possa apagar o que o torna único — antes mesmo que a água o consiga.
E talvez seja essa a escolha que espera São Vicente: repetir o erro de construir contra a natureza ou aprender, de uma vez por todas, que resistir começa por respeitar.
Nota : enquanto escrevia esta crónica fiquei 3 vezes sem energia elétrica.
Visao