A conversa do costume

1 – A Europa a falar sozinha. Salvo qualquer reviravolta de última hora, existe a forte probabilidade de uma “solução” para a guerra na Ucrânia ser encontrada na reunião, a sós, entre Donald Trump e Vladimir Putin, sem qualquer respeito pelas exigências europeias ou de Kiev. A concretizar-se, e respeitando as devidas distâncias, seria um regresso aos tempos inaugurais da Guerra Fria, em que Washington e Moscovo ditavam as regras e os outros, leia-se os europeus, ouviam e… calavam-se.
A realidade é dura. Depois de terem aceitado a chantagem negocial de Trump em relação às tarifas, os europeus tornaram-se mais ou menos irrelevantes para o Presidente dos EUA. Aos seus olhos e na lógica de poder pessoal em que funciona, os europeus já foram domesticados. Celebraram tarifas de 15% como se fosse uma vitória, comprometeram-se a comprar mais armas americanas e mais combustíveis, aceitaram elevar as suas contribuições para a NATO e até guardaram na gaveta a possibilidade de lançar uma taxa digital contra as empresas de Silicon Valley. Perante tanta capitulação, e recusando qualquer tipo de confronto com medo de saírem chamuscados, arriscam-se agora a ficar a falar sozinhos.
2 – O horror impune. Há terrores intoleráveis e outros que são aceites? Condenar milhares de pessoas à morte pela fome não devia merecer o repúdio unânime, firme e vigoroso de todas as nações? Uma Europa que se ergueu em nome da liberdade, da democracia e dos direitos humanos não pode, especialmente nos momentos mais difíceis, ter dois pesos e duas medidas em relação ao que se passa na Ucrânia e em Gaza.
Especialmente no momento em que já se percebeu como vai ser violenta e aterradora a ofensiva final que Benjamin Netanyahu prometeu para, nos próximos tempos, concluir a conquista total do território. Aquilo já não é uma guerra, mas apenas uma matança. Sem controlo nem vigilância internacional. Como nos piores regimes totalitários, basta alguém ser identificado como “inimigo” para ser imediatamente aniquilado. Depois, a máquina de propaganda faz o resto, como se viu na eliminação de Anas al-Sharif e de outros cinco jornalistas da Al-Jazeera: mesmo com a cadeia de televisão do Qatar, diversas ONG e membros das Nações Unidas a negarem-no, Israel insiste que o repórter era membro do Hamas e… ponto final. Longe vão os tempos em que a morte de dois jornalistas norte-americanos na Nicarágua fez precipitar a queda do regime de Somoza. Agora, em tempos de indignação banalizada, já nem o horror mais cruel consegue ter mais do que cinco minutos de atenção.
3 – Os incêndios previnem-se. Há narrativas que quase não mudam. Todos os anos, no verão, repetem-se as queixas sobre os incêndios florestais e as acusações sobre a falta de meios de combate – sobretudo os aéreos, sempre mitificados como se fossem a solução capaz de, instantaneamente, apagar os fogos. A memória é curta e, perante mais um avanço das chamas nas florestas, quase sempre desordenadas, ninguém repara que todos repetem os mesmos argumentos e acusações, apenas com a nuance de se dizer uma coisa quando se está no governo e exatamente o contrário na oposição.
Se deixássemos de olhar apenas para o umbigo, também depressa perceberíamos, por aquilo que temos visto nalguns dos países mais desenvolvidos do mundo, como os EUA, o Canadá e a Austrália, que os grandes incêndios são quase impossíveis de ser controlados – mesmo quando se tem dezenas de aviões ao serviço e os bombeiros mais bem treinados. É por isso que o fundamental é investir na prevenção. E, quando eles deflagram, ter o foco total na proteção civil, para evitar vítimas mortais. Só que, claro, essa postura racional não alimenta polémicas nem ajuda a destilar ódios. A continuar a insistir nos acessos de raiva do costume, não nos admiremos que, dentro de pouco tempo, comecem a culpar-se os imigrantes pelos incêndios. Já faltou mais.
4 – Chicote na justiça? A separação de poderes é um dos pilares do regime democrático. E o respeito pelas instituições devia ser um tema obrigatório em todas as disciplinas escolares e não apenas na Educação para a Cidadania. Como era esperado, o Tribunal Constitucional chumbou a Lei dos Estrangeiros. E, de imediato, o Presidente da República, como é sua competência, devolveu-a ao Parlamento. É assim que são as regras institucionais.
O que querem agora alguns? Mudar as regras, mudar a Constituição, mudar a composição do Tribunal Constitucional, mudar… tudo o que os contrarie. Já sabemos como é que isso acaba.
Visao