Os libertadores da nossa memória

No meu recente artigo “Lagos de Descobertas” afirmei, entre outras coisas, que um projecto intitulado “Libertar a Memória”, responsável por exibir, em Lagos, filmes sobre escravatura e colonialismo e por apresentar como comentadores ou debatentes Nuna, Apolo de Carvalho e Marta Lança, não era “libertar a memória”, mas, isso sim, “aprisioná-la num colete de erros e culpabilizações”. Afirmei, igualmente, que o que tais comentadores podem oferecer “não é informação, é propaganda e activismo woke de pessoas sem qualquer habilitação conhecida e reconhecida para falar deste assunto”.
Estas minhas afirmações incomodaram Luísa Rosa Baptista, a mentora e produtora do tal projecto “Libertar a Memória”, que decidiu responder ao meu artigo, nada dizendo que pudesse contestar o que afirmei. De facto, não nos mostrou quaisquer credenciais dos ditos comentadores para a função, nem nos provou, bem pelo contrário, que aquilo que fizeram em Lagos não foi propaganda woke. Ora, eu posso meter mais um pauzinho na engrenagem para mostrar que o foi.
Luísa Baptista insinua que só agora escrevi “Lagos de Descobertas” e referi o projecto “Libertar a Memória”, que ocorreu no outono de 2024, por razões relacionadas com as próximas eleições autárquicas. Mas está duplamente enganada. Eu não resido no Algarve, não tenho interesse directo ou envolvimento nessas eleições e só escrevi esse artigo agora porque foi agora que uma pessoa residente em Lagos me contactou para denunciar o que lá se vai passando no que toca à memorialização do passado e à informação histórica. Abro aqui um parênteses para reafirmar uma das várias coisas que a minha contraditora decidiu ignorar no artigo que escrevi. De facto, eu não escrevi esse artigo apenas com base na denúncia de uma pessoa, mas também apoiado numa longa conversa com a directora do Museu de Lagos e no meu próprio trabalho de pesquisa, na Internet, sobre as ideias das pessoas em causa, isto é, de Nuna, Apolo de Carvalho, Marta Lança, Catarina Demony e, agora, Luísa Rosa Baptista. Fechado este parêntese reafirmo que não tenho qualquer interesse nas autárquicas em Lagos — não sou eleitor nessa cidade —, mas como historiador e cidadão português tenho todo o interesse na verdade histórica e tenho muito que ver com as aldrabices que os auto-intitulados libertadores da memória andam há anos a tentar martelar na cabeça dos meus concidadãos, vivam eles em Caminha ou em Tavira.
E por isso me arrepiei ao deparar-me com oradores como Apolo de Carvalho, que supõe que a abolição da escravatura foi obra de pessoas negras ou que os portugueses foram os primeiros caçadores de humanos. E arrepiei-me ainda mais ao verificar que, para melhor “libertar a memória” das pessoas que constituíam a sua audiência, os promotores da sessão tinham uma banca onde sugeriam leituras complementares, o que seria uma óptima ideia se nessa banca se propusessem bons livros, de bons istoriadores, sobre a história da escravatura. Todavia não havia nessa banca um único — repito: um único — desses livros. O que não deve espantar-nos, pois as pessoas woke — como estas aparentemente são —, consideram que não se liberta a memória histórica dos portugueses com livros de História, mas sim com livros de teoria política e outras formas de agitação e activismo. Por isso, na referida banca, os habitantes de Lagos desejosos de saber mais sobre tráfico de escravos ou escravidão, depararam-se entre outros com Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, Políticas da Inimizade, Crítica da Razão Negra, O Mundo de Amílcar Cabral e a inevitável e muito a propósito História da Palestina Moderna, como poderão verificar na imagem abaixo.

Conheço este tipo de bancas desde os meus tempos de aluno na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na década de 1970, quando o átrio de entrada estava pejado de bancas em que o MRPP e a UEC (União dos Estudantes Comunistas) tentavam vender o seu peixe.
Em Lagos terá sido a mesma coisa. Nada disto tem que ver com informação, nem com libertar a memória. Tem que ver, isso sim, com propaganda política e com a tentativa de aprisionar a memória numa caixa de ignorância que depois se tenta fechar a cadeado. E se dúvidas houvesse quanto a isso, ou se houvesse a tentação de pensar que este fora apenas um episódio excepcional e pouco representativo, bastaria tão só recuar um pouco mais no tempo para desfazer essa ideia benevolente. Efectivamente, a minha investigação permitiu-me aprofundar o conhecimento sobre o projecto “Libertar a Memória”. O que passou na cidade de Lagos no outono de 2024, foi a segunda edição desse projecto. A primeira edição ocorreu no verão de 2023, em Sagres. E, perguntarão os leitores, ter-se-á, então, apoiado em alguém que soubesse História e que fosse capaz de proporcionar uma visão mais abrangente e informada? Infelizmente não. Nessa primeira sessão, o projecto “Libertar a Memória” deu mais do mesmo aos algarvios, ou seja, deu-lhes, entre outros, Luca Argel, o cantautor brasileiro que quer que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa peça desculpa pela escravatura, e Kitty Furtado, a activista e crítica cultural, assumida e orgulhosamente woke, que exigiu, tal como Apolo de Carvalho e Marta Lança, reparações ao estado português, e que considera que eu seria um perseguidor de intelectuais e activistas negros, sendo, por isso, não um adversário político, mas um inimigo. Sim, leram bem, um inimigo que persegue pessoas negras. Ser woke é isto. Quem contesta as suas ideias e aponta a sua óbvia falta de conhecimentos históricos passa a ser racista e inimigo.
Estas e outras pessoas que querem “desconstruir o imaginário da história dos Descobrimentos e do colonialismo”, serão, como referi no meu anterior artigo, pessoas muito competentes nas suas respectivas áreas de formação e saber, mas nenhuma delas tem, que se saiba, conhecimentos específicos para informar (e debater) sobre a história do tráfico de escravos, da escravidão ou do colonialismo. Como era inevitável eu contestei — e continuarei a fazê-lo se vier a propósito —, as posições públicas de Luca Argel e de Kitty Furtado, uma senhora com a qual já tive, aliás, ocasião de debater face a face, na RTP. Tem sido nestas pessoas, e noutras com posições semelhantes, que o projecto “Libertar a Memória” se tem apoiado e apresentado ao público. É isto que o museu e a câmara de Lagos querem dar à sua população à laia de evocação memorialista e de informação histórica? São, como é óbvio, livres de seguirem o caminho que entenderem, mas estará a população da cidade de acordo?
Luísa Rosa Baptista acha-se muito progressista e moderna por querer, naquilo que designa por “gesto cívico”, ouvir e considerar “a experiência de outros implicados, directa ou indirectamente, nas questões abordadas”. Mas eu interrogo-me: Apolo de Carvalho, Kitty Furtado ou Marta Lança foram escravos ou traficantes de escravos? Qual é a sua legitimidade para falarem nesse tema? São historiadores? Investigaram a questão a fundo? Estará Luísa Baptista convencida de que os afrodescendentes, só por o serem, descendem de escravos ou têm competência especial para falar nesse assunto? A mentora do projecto “Libertar a Memória” acha-se, também, muito progressista por estar a abordar questões que classiica como “(des)confortáveis” e a dar voz aos aspectos menos positivos da nossa História. Pergunta, até, retoricamente, o seguinte: “Não será já Portugal um país maduro o suficiente para encarar todos os lados da sua História, tanto os positivos e benéficos como os trágicos e negativos?”. Mas vem, certamente por desconhecimento, bater à porta errada e está a pregar a um convertido. Em 1999, tinha Luísa Baptista apenas 22 anos e ainda era, suponho, aluna do ISCTE e já eu escrevia sobre a “desconfortável” história do envolvimento português na escravatura. E escrevia sem ocultar nada.
observador