O Bloco de Esquerda agora é mais bolos, não é?

Na quinta-feira à tarde, Portugal vivia uma rara unanimidade: a exclusiva preocupação de todo o país era tentar perceber o que tinha acontecido no terrível acidente com o Elevador da Glória que provocou 16 mortes no centro de Lisboa. Corrijo: essa era, de facto, a preocupação “de todo o país” — menos do BE. Naquele dia, o Esquerda.net, que se apresenta como um “órgão de informação que é propriedade do Bloco de Esquerda”, tinha em manchete a “notícia” com o título “Estivadores italianos prometem bloquear os portos se Israel interceptar flotilha”. A “flotilha”, claro, refere-se à patusca armada onde segue Mariana Mortágua, que viaja bravamente pelos mares em direção a Gaza para “furar o cerco” de Israel, na “boa companhia” da eterna estudante Greta Thunberg e do influencer exibicionista Thiago Ávila. Só depois de passar por esse artigo se podia ler, encostado a um canto do Esquerda.net, o texto “Trabalhadores da Carris exigem ‘inquérito rigoroso’ às causas da tragédia”.
À primeira vista, poderia pensar-se que o BE está a ter dificuldade em perceber qual deve ser a sua ordem de prioridades. Mas não é nada disso. Não se trata de incompetência nem de obtusidade. Simplesmente, o Bloco de Esquerda está a adaptar-se para tentar sobreviver. Quando o voto dos eleitores estilhaça o sistema político, como aconteceu nas últimas legislativas, os partidos mais pequenos têm tendência para se tornarem monotemáticos. É uma forma de defesa. Com o Parlamento superpovoado, o BE precisou de encontrar um tema — e apenas um tema — que o distinguisse dos restantes partidos. É uma estratégia muito comum nos mini-micro-nano partidos. O PAN, por exemplo, concentra-se nos direitos dos animais; o JPP centra-se nos problemas da região autónoma da Madeira; em tempos, o Partido da Solidariedade Nacional, de Manuel Sérgio, dedicou-se aos direitos dos reformados.
O Bloco de Esquerda podia ter escolhido como tema único o controlo das rendas na habitação, uma proposta que Mariana Mortágua repetiu inúmeras vezes durante a campanha. Ou podia, de forma mais genérica, ter apostado na caça “aos ricos”, que seduz e entusiasma muito do seu eleitorado. Mas optou por Gaza e pela “causa palestiniana”. A 12 de maio, Mariana Mortágua publicou um vídeo nas redes sociais do BE onde contava que na véspera, num comício, lhe tinham oferecido um keffiyeh e proclamava que iria usar esse lenço palestiniano até ao fim da campanha, “todos os dias”, como um símbolo do “compromisso” do partido com a “libertação da Palestina”. Desde essa altura, o programa e o discurso do Bloco resumiram-se, crescentemente, a Gaza, Gaza, Gaza.
Foi um erro. Nos países onde os socialistas estão no governo, a esquerda radical tem usado a “causa palestiniana” para provocar fissuras no eleitorado. Paralisados pelas obrigações da diplomacia, aqueles partidos hesitam, titubeiam e vacilam, ficando vulneráveis aos ataques da esquerda à sua esquerda (no Reino Unido, abrindo até espaço ao aparecimento de um novo partido). Cá, também foi assim: quando era primeiro-ministro, mesmo durante a geringonça, António Costa nunca decidiu reconhecer a Palestina, invocando a necessidade de cautela e de prudência. Mas, agora, o PS está na oposição e, por isso, livre de constrangimentos e de compromissos, pode exigir que “a direita” avance em todas as frentes contra Israel. Isto quer dizer que o tema único escolhido pelo Bloco de Esquerda não o distingue da restante esquerda. O BE marcha por Gaza? O PS, o Livre e o PCP também.
Há outra dificuldade. É que, por mais que o povo de esquerda se mobilize pela “causa palestiniana”, é difícil derrotar a geografia. Há 4 mil quilómetros que separam Portugal da Faixa de Gaza. É possível entusiasmar os eleitores por uma causa distante durante duas semanas. Mas provavelmente não durante dois meses. E seguramente não durante dois anos. Quando o país se angustiou com a tragédia no Elevador da Glória, Mariana Mortágua fez um tweet e publicou um vídeo sobre o assunto, sem o inseparável keffiyeh. Mas, mesmo assim, havia um facto inultrapassável: mesmo quando fez isso, a líder do Bloco estava algures, num mar revolto, a caminho de Gaza.
Mariana Mortágua parece a encarnação política do pasteleiro José Manuel Garcia Marques Severino. Este personagem de Herman José apareceu num estúdio de televisão pronto a ser entrevistado. Mas, quando Lídia Franco o apresentou como chamando-se “Perfeito Calhau” e tendo como profissão “radiotelegrafista”, ele interrompeu-a: “Quer-se dizer, eu é mais bolos, não é?” Neste momento, quer-se dizer, Mariana Mortágua é mais Gaza, não é? É o que acontece quando um partido monotemático escolhe o tema errado.
observador