Aos populistas de todos os partidos

Nove meses depois de ter chegado ao Hôtel Matignon, o primeiro-ministro francês, François Bayrou, reconheceu que apenas com medidas impopulares é possível reduzir a despesa pública, baixar o défice e descer a dívida do Estado. E não, Bayrou não é um monstro. Pelo contrário, é um moderado com provas dadas, um político experiente, cauteloso, ciente dos equilíbrios necessários para negociar, exímio conhecedor das regras dos corredores do poder francês. Esteve com Balladur, Chirac, Juppé e Edouard Philippe. Foi dos primeiros apoiantes de Macron. Um verdadeiro sobrevivente político cuja carreira pode terminar amanhã levando consigo o presidente francês, caso a moção de confiança submetida pelo governo seja reprovada no parlamento. Bayrou não é um novato nem um populista, mas reconheceu o óbvio: a França tem de reduzir a dívida pública se quiser inovar e evitar um empobrecimento gradual, entrar no século XXI e não chegar a um momento (cada vez mais próximo) em que o fim das prestações sociais serão ditadas por uma convulsão social que fará com violência o que os políticos não conseguem com negociação. Isso, ou acabar com um governo de cariz autoritário que garanta segurança e sossego à maioria da população mesmo que à custa de um empobrecimento generalizado.
Um dos muitos danos que os governos de António Costa provocaram ao país foi um aumento inusitado do número de funcionários públicos, sem que tal tenha correspondido a uma melhoria dos serviços públicos. De 656 mil, em 2014, o número de funcionários públicos atingiu os 742 mil, em 2022. Um novo máximo foi alcançado em Maio com governo da AD, mas o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Ferroviários continuou com apenas um inspector especializado. Há funcionários públicos onde não deviam estar e não os há onde estes fazem falta. O impacto desta desorganização nas contas públicas não é difícil de imaginar. Sim, é verdade que os últimos governos de António Costa conseguiram excedentes orçamentais e que a dívida pública (face ao PIB) desceu. Mas à custa de cativações dos serviços públicos (um dos motivos por que pioraram) e devido às baixas taxas de juro porque a pressão inflacionista era reduzida na época. Não fosse o aumento do número de funcionários públicos e a desorganização do Estado e os excedentes orçamentais seriam maiores, as cativações menores ou até mesmo inexistentes. Mas a contratação ao calhas de funcionários públicos fez-se porque são um eleitorado fácil para os governos. À época, do PS; agora da AD, que se esforça por os cativar; a seu tempo mais uma fonte de crescimento do Chega. Um analista, comentador ou mesmo político mais cínico dirá que se trata de pragmatismo; outro mais realista, que não passa de populismo. Não o populismo histriónico que salta à vista, mas algo mais subtil, engenhoso, pomposo e manso, embora igualmente penetrante e destruidor.
A França tem uma dívida pública que a impede de inovar e Portugal um excesso de funcionários públicos que torna inócua uma reforma do Estado digna desse nome. Se a digitilização dos serviços do Estado tornar redundante muitos dos trabalhos prestados por funcionários públicos, uma reforma do Estado só será completa se o governo determinar o que fará com esses funcionários que deixarão de ter com que se ocupar. Mobiliza-os para outras funções? Força os mais velhos à reforma? Ou recorre ao despedimento? Levantar estas questões não é populismo nem ignorância. É querer lidar com os factos. Fazer o que há décadas a maioria dos políticos (governos e oposições) não estão dispostos a fazer porque querem ganhar eleições independentemente do custo que a sua inércia custe ao país e às pessoas. O tal populismo subtil, pomposo, engenhoso e manso, mas tão penetrante e destruidor quanto o dos que gritam.
A proposta de François Bayrou não é popular. Infelizmente é necessária. A proposta da Iniciativa Liberal para a redução do número de funcionários públicos não agrada à maioria. Mas é inevitável, sob pena de dentro de alguns anos termos milhares de pessoas sentadas em departamentos e repartições públicas sem terem nada que fazer. É verdade que em Portugal a percentagem de funcionários públicos relativamente à população empregada é inferior à da Suécia e da Dinamarca. Mas também à da França. E se há coisa que a Suécia fez nos anos 90 do século XX foi reformar o Estado e a economia. Alterou o sistema fiscal e a negociação colectiva dos salários, colocou um tecto nos gastos públicos, reduziu o sector empresarial do Estado e procedeu a uma aproximação entre os salários e a produtividade. Enfim, reformas das quais há anos que Portugal foge a sete pés, pelo que não deixa de ter graça que, por cá, os Estados que fizeram reformas sirvam de pretexto para não se fazerem reformas.
Podemos negligenciar as dívidas ou o peso desmesurado do Estado que reduz a margem para investimento e melhoria das condições de vida. Mas as dívidas, principalmente as dívidas públicas, foram dos maiores motores das revoluções mais destrutivas. E se há lição que a França vai recordar (até porque já passou pela experiência diversas vezes) é que é preferível agir e reformar enquanto há tempo que fazê-lo através de mudanças abruptas ou truques de cosmética que garantem segurança como compensação do empobrecimento. Se há lição de que nos podemos lembrar em Portugal (até porque já passámos pela experiência diversas vezes) é que ganhávamos todos se olhássemos para os problemas de forma séria e verdadeira em vez daquele modo pomposo que mais serve para disfarçar artifícios gastos.
Uma última nota relativamente à possibilidade do governo francês cair e de não ser aprovado um orçamento para 2026: a Alemanha é o único Estado que pode socorrer a França em caso de incumprimento do Estado francês. Mas a Alemanha (como aliás toda a Europa) tem mais em que gastar dinheiro, nomeadamente em defesa. 2026 não é 2011. Os meios disponíveis são menores e as ameaças externas, maiores. O próprio chanceler alemão, com a frontalidade que lhe é característica, alertou os jovens para que não contem com o sistema público de pensões. É um aviso à França, mas também a Portugal, cuja redução da dívida pública foi conseguida face ao PIB, e muito porque este cresceu. Na eventualidade de uma recessão, a percentagem da dívida face ao PIB sobe e as conquistas conseguidas esfumam-se de um dia para o outro. A margem é pequena, razão pela qual se torna urgente olhar para a reforma do Estado de uma forma séria e sustentada e não como algo cool e sexy como seja pôr documentos numa cloud.
observador