A independência dos bancos centrais

Na passada semana, o mundo assistiu a mais uma cena insólita entre as muitas que as presidências Trump proporcionam. Lado a lado, com capacete de trabalhadores nas respectivas cabeças, o Presidente dos EUA e o presidente do banco central federal americano interrompiam a uma visita às obras da nova sede da Reserva Federal em Washington para falar aos jornalistas. Não é preciso descrever o resto da cena a que toda a gente assistiu. Com Trump, estas ocasiões são mais do que as manifestações públicas das idiossincrasias de um líder político. São ensaios recorrentes de uma forma de comunicar com o eleitorado que se assemelha tanto quanto possível à imagética e tensão próprias de um reality show em que um dos participantes – o próprio Trump – é a personagem sempre saliente, sempre dominante, sempre indispensável.
Neste caso particular, Trump pretendia destruir publicamente a reputação de Powell. Foi mais uma das suas inúmeras investidas com esse propósito. Depois de as suas veleidades de despedimento de Powell terem sido frustradas pelo Supremo Tribunal federal americano, Trump pretende agora, senão forçá-lo a demitir-se por pressão política insuportável, ao menos deixar na lama a sua reputação de modo a garantir que o presidente seguinte da Reserva Federal será mais dócil à vontade da Casa Branca, o que no contexto actual significa reduzir as taxas de juro. Na próxima quarta-feira veremos o que a Reserva Federal decidirá fazer. Não tenho quaisquer dúvidas de que, nesta conjuntura, a economia americana fica mais bem protegida se a política monetária não for conduzida pelos enervamentos de Trump. Nem tenho quaisquer dúvidas de que Powell meritoriamente logrou o soft landing da economia americana após o recente surto inflacionista que muitos vaticinaram como impossível.
No entanto, o problema de fundo não é novo e está longe de estar resolvido. Isto é, os bancos centrais devem levar a cabo decisões de política monetária em total independência? Se sim, até onde vai essa independência? Como são sindicáveis os critérios que apoiam as decisões dos bancos centrais? Excluindo a função de supervisão bancária, quando esta cabe aos bancos centrais, não é uma decisão menor subtrair à vontade política executiva uma função tradicionalmente associada à própria soberania, como é a política monetária, na medida em que esta procura determinar o volume da massa monetária, as taxas de juro e a taxa de câmbio nacional. Se, em Portugal, estas questões não se colocam de forma premente é porque uma quase consensual decisão soberana ter sido tomada de se “partilhar” a soberania nacional com outras soberanias nacionais no contexto da União Europeia e, mais particularmente, da União Económica e Monetária. Por outras palavras, a decisão portuguesa sobre a “independência” do banco central foi tomada ao abrigo de uma decisão maior sobre a soberania nacional. Daí que seja uma tolice ignorante ou um exercício de má-fé tornar equivalente o contexto das nomeações para governador do Banco de Portugal antes e depois da nossa adesão ao Eurosistema.
Paradoxalmente, foram os Estados democráticos assentes numa forma mais ou menos confusa de soberania popular que optaram com mais frequência por garantir estatutos de independência aos bancos centrais. Não por inércia histórica, já que a independência, e até o carácter privado das decisões de política monetária na era de ascensão inicial dos bancos centrais, foram inicialmente substituídos por relações de subordinação destas instituições ao poder executivo. Quando finalmente a ideia da bondade da independência institucional triunfou na Europa e nos EUA, tal sucedeu por razões vindas quer do estudo da economia política, quer da teoria das organizações e instituições. A tese “independentista” americana dava conta de um superior desempenho na estabilidade dos preços e do próprio andamento da economia, se os banqueiros centrais estivessem imunes aos gestos espasmódicos dos políticos, criaturas sempre a correr atrás dos caprichos irracionais dos eleitores. A tese “independentista” alemã, mais sofisticada, procurava colocar a estabilidade dos preços e a independência institucional como um dos preceitos fundamentais de uma constituição económica da liberdade paralela à constituição política propriamente dita – em ambas reinaria uma certa concepção da separação dos poderes.
Mas os méritos destas teses não iludem a natureza do problema que lhes subjaz. A política monetária é uma forma de política e envolve considerações primordiais de articulação do bem comum de uma sociedade. Isto significa que o banco central “soberano” exerce poder político concreto, segundo uma das suas várias manifestações. Além disso, até os implacavelmente germânicos estatutos do BCE admitem que é preciso articular a política monetária com as restantes formas da política económica, como a orçamental, o que pareceria indicar que a cooperação desejada faz ansiar por uma coordenação política explícita.
Na realidade, houve sempre uma certa tensão entre, por um lado, a lógica da separação dos poderes, com o seu corolário mais peculiar – a independência do poder judicial –, e, por outro, o imperativo de coordenar as vontades políticas ao serviço de um projecto político ou da ingénua realização do bem comum. Os juízes que se queriam inicialmente livres do poder do rei centralizador, rapidamente perceberam que, na era democrática, a sua independência era igualmente vital para um adequado e imparcial cumprimento da lei, e assim para a realização de uma sociedade justa. Porém, quando a ideia de separação de poderes se alastrou ao conceito e realidade do Estado-regulador, ele mesmo um produto da extraordinária concentração de tarefas que o Estado foi coleccionando para si, foi a sedução da independência judicial que contagiou a instauração da independência-reguladora. E se a independência judicial vingou mesmo quando demonstrativamente o juiz era também ele co-legislador, e não apenas uma boca mecânica que proferia a sentença prevista pelo legislador, também o regulador e o banqueiro central puderam reivindicar independências apesar de se terem tornado juízes e legisladores.
Acontece que esta assunção de poder e o seu respectivo exercício não são acompanhados da sujeição à repreensão ou crítica públicas. A voz pública que se dirige a ela é interpretada como pressão ilegítima e condicionadora, apenas tolerável dada a prioridade da liberdade de expressão nas sociedades democráticas, mas sem função política propriamente dita. A este respeito, a tensão redobra por uma via que um exemplo pode ilustrar bem. Em tempos, Alan Blinder, Vice-Presidente da Reserva Federal nos anos 90, disse num programa televisivo que “o último dever de um governador de um banco central é dizer ao público a verdade.” Aqui, a autoridade monetária encontra a derradeira justificação da sua “independência” na formação da verdade e na sua comunicação ao “público”. Adquire conscientemente uma função política pública que não se confunde com especializações técnicas da arte da administração. Com que fito? Mobilizar a opinião, evidentemente; a mesma opinião à qual a autoridade monetária foi inicialmente subtraída e à qual exige permanecer alheia.
observador