À sombra de Camus, um estrangeiro convincente em Veneza

Na irregularidade do seu percurso de cineasta, L’Étranger faz a diferença na copiosa obra de François Ozon. O filme consegue ser fiel ao enigmático primeiro romance de Camus — património literário francês ensinado nos liceus, traduzido em 68 línguas — e audaz a nível narrativo, pelo que sugere e economiza, pelos silêncios de uma actuação superior de Benjamin Voisin na pele de Meursault. L’Étranger trata com atenção a voz interior do livro e de uma personagem ambígua, esse Meursault que, depois da morte da mãe, mata um árabe na Argélia colonial e não esboça o menor gesto para defender-se em tribunal, que o condena à morte.
O cinema assustou-se sempre com a obra de Camus, o “homem absurdo” e o turbilhão das suas forças contraditórias. Fate/Yazgi (2001), do turco Zeki Demirkubuz, verteu com particular negrume este mesmo livro, numa das raras adaptações conseguidas, não tão célebre, contudo, como a de O Estrangeiro, de Luchino Visconti, que falhou ao transpô-lo para os anos 60 (contra a vontade da viúva do escritor), à procura de uma actualidade política em década de fim de impérios — e que redundou em filme desinspirado, é um Visconti menor.

▲ François Ozon, o realizador de "L'Etranger", nova adaptação da obra de Albert Camus
AFP via Getty Images
Ou seja, lenha para se queimar era coisa que a Ozon não faltava à partida. Quando o cineasta evocou influência bressoniana para este filme em particular, temeu-se o pior, tantos já foram por aí e estatelaram-se. Mas Ozon foi à raiz do livro sem copiar ninguém. E mostrou em Veneza um filme convincente e seguro, protegido de qualquer retórica sentimental. A opção estética do preto e branco é aposta ganha, gera uma ambiência distante, espectral, que sugere a distância que separa Meursault do mundo, personagem tão actual ontem como hoje. Ozon fecha com Killing an Arab, uma das primeiras canções dos The Cure, influenciada na mesma fonte.
A House of Dynamite, em contraponto, correu mal a Kathryn Bigelow e é porventura o pior filme da autora de Estranhos Prazeres e Estado de Guerra. De tão altas que estavam, as expectativas levaram a esta queda sonante. Chegará em data a anunciar à grelha da Netflix sem que se saiba, por enquanto, qual será o seu percurso nas salas. Ideia do filme? Um míssil balístico intercontinental, com origem remota no Pacífico (alude-se diversas vezes à Coreia do Norte para evitar embaraços diplomáticos mais bicudos), desloca-se à velocidade de 6 km por segundo em direcção a Chicago, metrópole com 10 milhões de habitantes. Desloca-se tão rápido, que o GBI americano (Ground-Based Interceptor) não consegue travá-lo. E a América entra em pânico.
A catástrofe nuclear nunca chega a ter representação no ecrã — Bigelow prefere usá-la como estímulo e fonte de ansiedade em contagem decrescente (durante o percurso do míssil imparável), ficcionando com o rigor que se conhece à cineasta as reacções de diversas fontes de poder dos EUA. Acompanhamos essa diversidade de respostas nos poucos minutos que o país tem para reagir, do Ministério da Defesa à Stratcom (comando estratégico) do Centro de Operações de Emergência Presidencial à resposta do próprio Presidente (papel de Idris Elba).

▲ Rebecca Ferguson, a protagonista de "A House of Dynamite", de François Ozon
Eros Hoagland/Netflix
Só que este esquema de vinte e poucos minutos contados um bom punhado de vezes sob diversos pontos de vista torna-se repetitivo, previsível, e o factor humano que o filme acrescenta à ficção é pouco consistente (uma mulher grávida, uma criança com febre, ou a notícia de que uma filha tem novo namorado são pensamentos que vêm à cabeça das mais variadas chefias militares). É um desacerto duro de seguir, quando a audiência se dá conta de que também está a ser “levada pela trela” no programa, posta a salivar como o cão de Pavlov. Donald Trump é que há-de esfregar as mãos com o que se vê no ecrã: uma América de ficção e clara inclinação azul-democrata, com um novo Presidente negro (Elba) que hesita em ripostar, já que o país não sabe quem lançou o míssil, desconhece o inimigo. Nisto, Chicago já era. Nesta teatralização, nada faz sombra ou se aproxima sequer de Dr. Strangelove, de Kubrick.
Kathryn Bigelow quis pôr a nú a vulnerabilidade de um país que se julga invencível. Mas A House of Dynamite é um passo em falso, não chega a tornar-se embaraço, mas fica lá perto. São más notícias — Bigelow é, tão-só, uma das mais brilhantes realizadoras da actualidade.
observador