Um retrato pungente da precariedade sacudiu Veneza

É preciso falar de Paul, a personagem que Bastien Bouillon interpreta em À pied d’oeuvre, sétima longa-metragem — e a melhor até à data, a larga distância — da francesa Valérie Donzelli. Paul tem 42 anos, é divorciado, os dois filhos já adolescentes vão partir com a mãe para o Canadá. Chegou a ganhar bem a vida como fotógrafo, sempre teve apoio familiar, depois trocou as fotos pela escrita. O êxito do primeiro livro não se repetiu, a editora acaba de recusar o seu novo manuscrito, um romance esperado que nunca mais chega. E Paul, lentamente, começa a abdicar de coisas, à medida que vai ficando com menos dinheiro, até não ter quase nada.
O momento que mais reflecte a transformação de Paul acontece quando ele arranja um biscate de taxista e, numa corrida que o leva para fora de Paris, atropela um cervo que se atravessa na estrada. O bicho fica com as patas partidas, Paul pede ajuda pelo telefone e, sem mais poder fazer, poupa-o a mais sofrimento. Contudo, leva-o na bagageira, com a ideia de o desmanchar. É que aquele veado significa também uns quantos quilos de carne…

A cineasta francesa ValérieDonzelli
À pied d’oeuvre podia ter tombado num filme auto-condescendente, com uma falsa modéstia forçada, à medida que Paul cai na precariedade. O seu trabalho criativo não lhe paga as contas. Deixa o apartamento, instala-se num estúdio de amigos, cada vez mais isolado. Do estúdio descerá para o quarto alugado. Uma aplicação telefónica que leiloa trabalhos precários e selecciona quem cobra menos — moderna versão do “moço de recados” escravizado — torna Paul num faz-tudo, onde quer que o chamem em Paris, acartar sacos de detritos ou desentupir retretes. A nível social, como ele diz, perdeu a classificação. Mas a nível moral, não perdeu a vontade de ser escritor e manter uma vida digna. Às tantas, rapa o cabelo, não como um condenado, mas como se procurasse, na “purificação” do gesto, algo da ordem da santidade.
O filme baseia-se num romance autobiográfico de Franck Courtès que, não há muitos anos, podia ter estado aqui, em Veneza, na condição de fotógrafo, é assim que o recordo quando trabalhava, como free lancer, para a revista francesa Les Inrockuptibles e também para o Libération. Não conhecia a sua mudança de vida nem li o livro que deu título a este filme, publicado pela Gallimard em 2023. Certo é que Valérie Donzelli adaptou-o ao grande ecrã com brio e um sentido de dignidade a toda à prova.
O registo da competição mudou radicalmente com No Other Choice e não é por acaso que Park Chan-wook dedica o seu novo filme a Costa-Gavras: em entrevista este sábado, o sul-coreano contou que é fã antigo do veterano autor de Golpe a Golpe (2005), filme que, tal como No Other Choice, adapta a novela The Ax, de Donald E. Westlake. Apesar disso, não há atropelos de nenhum tipo entre as duas obras e este é mesmo um regresso em grande para o cineasta de 62 anos que o mundo conhece, sobretudo, do êxito mundial de Oldboy.
A influência de No Other Choice não vem de livros manga como Oldboy, mas há um lado cartoonesco inato ao cinema de Park Chan-wook que se adapta exemplarmente a esta farsa descabelada sobre o capitalismo, em era de inteligência artificial. Man-Soo (Lee Byung-hun) é um pai de família dedicado, casado e com dois filhos. Construiu uma casa de paraíso em que cultiva bonsais e trabalha há décadas — empregado exímio — para uma indústria de celulose que, certo o dia, o põe na rua. O homem reage, desconsolado: põe a casa à venda e, entre mais apertos, cancela a assinatura da Netflix (com palmas na sessão de imprensa). Permitem-lhe, contudo, candidatar-se a um cargo de chefia. Escaldado, ele decide então começar a eliminar fisicamente a concorrência.

“No Other Choice”, de Park Chan-wook, a concurso pelo Leão de Bastien Bouillon
Quanto mais endiabrado é No Other Choice (será distribuído em Portugal pela Alambique Filmes), mais eficaz se torna. Os momentos de humor e o serviço de Park à comedia negra estão sempre a descobrir novas digressões, uma delas é a arma usada por Man-Soo para se livrar dos rivais, uma velha pistola norte-coreana que outrora foi guardada como troféu por um antepassado da personagem na Guerra do Vietname. Man-Soo sabe que a ciência forense dificilmente o ligará a essa pistola. E nem toda a gente no Ocidente está ao corrente disto (foi Park quem o contou) mas, durante o conflito no Vietname, tropas sul-coreanas combateram ao lado dos Estados Unidos quando se deram conta de que a Coreia do Norte apoiava clandestinamente o exército vietcongue. O detalhe da pistola torna-se então um rastilho para mais uma teoria da conspiração num universo já de si absurdo. Park Chan-wook tem um filme em Veneza para o palmarés. Resta saber se o júri se dará conta de que este cinema é único, pessoal e intransmissível.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
observador