A nova censura é o título

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A nova censura é o título

A nova censura é o título

Vivemos numa era em que já não é preciso mentir para enganar. Basta escrever um título ambíguo, distorcido, inflamado — e o estrago está feito. Nunca foi tão fácil manipular a perceção pública. Nunca foi tão perigoso ser superficial.

O maior inimigo da democracia hoje? Não é uma figura autoritária, nem um partido extremista isolado. É a soma silenciosa de distrações diárias, notificações infinitas e manchetes gritadas que ninguém lê até ao fim. O inimigo veste a pele de modernidade, mas corrói os alicerces do debate racional como uma traça faminta pelo tecido do nosso pensamento coletivo.

As redes sociais, outrora promissoras pontes de diálogo e liberdade, tornaram-se arenas de espetáculo. E não há espetáculo mais barato do que a indignação fabricada.

Quantas vezes lemos apenas o título? Quantas vezes comentamos sem abrir o artigo? Quantas vezes partilhamos algo que confirma o que queremos acreditar — sem saber se é verdade?

A resposta é perturbadora. Estudos recentes mostram que mais de 70% dos utilizadores das redes sociais não passam do título. Não leem. Não refletem. Apenas reagem. Estamos a criar gerações inteiras treinadas para consumir estímulos, não ideias. O vício do “scroll” substituiu o prazer da leitura. A paciência tornou-se obsoleta.

Mas não é apenas uma questão cultural ou de gosto. É político. Gravemente político.

Porque esta nova realidade digital não afeta todos da mesma forma. Os discursos mais simples, mais radicais, mais inflamados — esses são os que viajam mais rápido. O algoritmo adora a fúria. O algoritmo premia o exagero. O algoritmo não tem ética.

E é assim que vemos o crescimento assustador de narrativas populistas e extremistas. Não porque as pessoas se tornaram subitamente intolerantes, mas porque são expostas, repetidamente, a frases feitas que tocam nos medos mais básicos. “Soundbites” letais, curtos como um soco no estômago, que dispensam contexto, factos ou ponderação.

É um terreno fértil para os demagogos. Eles não precisam de provar nada — basta-lhes ser partilháveis.

Enquanto isso, os discursos mais equilibrados, mais complexos, mais responsáveis… esses morrem no silêncio. Porque não cabem num tweet. Porque exigem tempo. Porque não geram polémica.

Estamos a assistir a uma inversão perversa do valor do discurso. Quanto mais radical, mais visibilidade. Quanto mais prudente, mais invisibilidade. A democracia sempre exigiu debate, mas este novo palco digital não promove debate — promove combate.

E, pior, não é um combate justo.

Os jovens, que deveriam ser educados para pensar criticamente, estão a crescer num ambiente onde a rapidez da reação vale mais do que a profundidade da análise. Já não há tempo para pensar. Há apenas tempo para responder. Para partilhar. Para reagir com “emojis” e indignações instantâneas.

Estamos a fabricar cidadãos de reação, não de reflexão.

E não pensemos que isto é apenas um fenómeno entre adolescentes. Adultos bem informados, formadores de opinião, jornalistas até — todos, em algum momento, caem na armadilha do título provocador. E cada clique num link enganador é uma moeda entregue a um sistema que nos desinforma mais do que informa.

Isto não é um exagero. É uma realidade documentada, medida e estudada. Mas é uma realidade que poucos querem enfrentar porque é mais cómodo continuar a participar no jogo. Porque é mais fácil ganhar atenção com ruído do que com conteúdo.

É urgente uma revolução do discernimento. Precisamos de ensinar, nas escolas e nas casas, que ler é um ato político. Que compreender é um ato de resistência. Que partilhar sem pensar é colaborar com a ignorância.

Precisamos de reabilitar o tempo. O tempo para refletir, para ler até ao fim, para discutir com nuances. Porque sem esse tempo, estamos a entregar as chaves da opinião pública a quem grita mais alto, não a quem pensa melhor.

O problema dos títulos “clickbait” não é só enganarem. É que moldam a realidade antes de ela ser compreendida. Criam climas de opinião, formam julgamentos, geram polarização — tudo com meia dúzia de palavras cuidadosamente escolhidas para manipular a emoção. E quando a emoção substitui a razão, o espaço público torna-se terreno de guerra, não de diálogo.

A solução não virá das plataformas. Elas alimentam-se disto. Elas são desenhadas para isso. A solução tem de vir de nós. Da exigência individual de não sermos marionetas do algoritmo. Da coragem de dizer: “Não partilho isto antes de o ler”. Da força de questionar, mesmo quando o título nos dá razão.

É uma batalha difícil. Porque vai contra o conforto da simplicidade. Mas é uma batalha existencial. Porque sem ela, as ideias desaparecem. E quando as ideias morrem, sobra o fanatismo.

Estamos a perder o fio à meada. Estamos a transformar o espaço público num mercado de gritos e palavras ocas. Se não travarmos esta erosão, o debate democrático tornar-se-á um teatro vazio, onde só ecoa o som dos extremos.

É altura de parar. De sair do ciclo vicioso da superficialidade. De reconstruir uma cultura de profundidade, de leitura, de escuta ativa. Porque só assim conseguiremos proteger o que ainda resta da verdadeira liberdade de pensar

observador

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