Pontos Negros, sinal de vida

O bonito classicismo de «salvem as nossas almas» (‘Save Our Souls’) foi deturpado pelo moderno ‘S.O.S.’. Há, contudo, nova e boa razão em seu favor: o regresso de Os Pontos Negros, banda-relâmpago que actua em campeão tridente avançado onde começou por jogar com quatro delanteros (Filipe Sousa na voz e guitarra, Jónatas Pires na voz e guitarra, Silas Ferreira, teclas; David Pires, na bateria, foi o outro membro da banda) e pode ser comparada, em influência geracional de três álbuns entre 2008 e 2012, aos mais recentes e duráveis Capitão Fausto, na medida em que primeiro refizeram na língua de Sá de Miranda o novo rock dos bares subalternos de New York. Estes os gémeos bons; aqueles os gémeos maus. Estes de Alvalade, aqueles da linha de Sintra. Estes os primos bem-sucedidos, aqueles os primos escritores.
Entrementes, os teclados brilhantes de Silas Ferreira têm sido vistos nos concertos de Benjamim e Samuel Úria, e os solos de guitarra de Jónatas Pires foram achados em vitais concertos a solo, e também nos concertos de Úria, o cabeça de cartaz da defunta editora Flor Caveira, que trouxe pela mão os velhos conhecidos – além de B Fachada, o melhor de todos no arreio de melodia e texto. Regresso para comemoração da efémera idade dos 20 anos da formação começada em 2005 e com projecção ao vivo e indirecta em três concertos, entre Setembro e Novembro: o primeiro festivaleiro, o segundo invicto e o último eléctrico do progresso é sempre na capital. Olhando para cima a subida é íngreme porque se ouve um Chiado e espreita um Princípe Real na profusão de paróquias ladeiras. Tome o leitor em suas mãos os bilhetes para as ocasiões libatórias: consulte pontosnegros.com.
Excitar o pó das memóriasA nova canção de Os Pontos Negros dá-se ao contacto pela internacional sigla. ‘S.O.S’ (2025) vai ficar pelo refrão sublime e pelos teclados brilhantes. O primeiro acorde lembra o início de ‘Conto de Fadas’, o segundo verso tanto pode ser um toque no ombro do maior escritor de canções como um aceno à juventude; mas é no refrão que o desequilíbrio se torna texto:«Só preciso de aguentar mais um minuto a cabeça fora de água.
Não consigo pagar mais a conta com o que sobrou da mágoa.»
‘SOS’ conta um encontro amoroso recorrendo à imagem da «mensagem na garrafa rolhada posteriormente deitada ao mar com elevado grau de improbabilidade de ser encontrada por outrem». A hipérbole é frutuosa porque introduz um exagero apreciável no êxito da conquista romântica com que nos podemos identificar. Mais importante: esse exagero remata a canção, excitando o pó das memórias. Vou tentar explicar porquê. O refrão repica como pedra lascada em tábua de chinquilho côncava e derruba a pedra lisa que estava antes ali posta de pino. Feita de duas partes instrumentais com cadências díspares e uma ponta final de tour, junta a beleza harmónica das teclas com solos de guitarra dionisíacos, numa polifonia atribuível aos meus venerados Strokes. Ouça-se ‘Under Cover of Darkness’ (2011) e compare-se. A verdade do sujeito que saiu pelo limiar da dor, é redita em forte progressivo como solução pessoal do cinzento. Ouça-se ‘The Modern Age’ (2001), também com trejeito lúdico. A canção ‘Terra Prometida’ (2021) já tem a estética aventureira e a mesma sequência: descrição automática, antítese luzeira e desenlace em clímax.
O estilo declarativo da entoação de Jónatas nem sempre soa musical com a rima emparelhada e pobre da primeira parte da canção. Com o mesmo estilo clássico, cavo e branco de declamação, os poetas beat escreviam poemas sem rima. Também neles, o fluxo de consciência era compensado por uma intuição melódica básica que Ginsberg nunca conseguiu explicar aos outros. (Ele aprendeu-a com a musicalidade de Blake). Também no caso de Jónatas, a planura da perda em presa desilusão é compensada pela intensidade dionisíaca que se lhe segue numa libação do chorume da própria alma. Livre, festivo, reparado, abana a cabeça à tona de água e diz a verdade contrária ao ressentimento.
Aliás, o álbum a solo de Jónatas Pires, Terra Prometida (2021) pode ter sido o princípio da metamorfose da voz de Os Pontos Negros: houve uma sombra logo há uma primeira pessoa. A realidade começa a colar-se com a experiência própria. Semblando épicos sobre humilhação com o lenço prendendo a testa como Springsteen. Podem aqui ouvir-se ‘Padeiro de Portalegre’, ‘Eu só Preciso’, ‘Falsa Partida’. Há lirismo, há gradação, há zangas e há rumores. Antes, nas canções de Os Pontos Negros sentia-se uma circularidade centrípeta. Rodavam bem, e por isso não rompiam. Diziam tudo e não abriam o pano. As melhores excepções foram fotografias bem tiradas: ‘Magnífico Material Inútil’, ‘Salomé’, ‘Conto de Fadas de Lisboa a Sintra’, ‘Tudo Floresce’, ‘Senna’.
Jornal Sol