Guilherme d’Oliveira Martins. ‘A Geração de 70 criticou-nos para sermos melhores’

Com introdução de Eduardo Lourenço e organização e coordenação de Ana Maria Almeida Martins, Guilherme d’Oliveira Martins e Manuela Rêgo, o Dicionário da Geração de 70 é o resultado de um esforço coletivo que levou nada menos do que trinta anos a ganhar forma. Esta obra de 800 páginas, uma edição conjunta da Imprensa Nacional e da Presença, não se limita aos grandes protagonistas, apresentando-nos também os nomes menos lembrados que gravitam em torno desse núcleo duro. Numa perspetiva abrangente e multifacetada, aborda ainda as artes, as ciências, as ideias, a vida política, as publicações e os episódios saborosos – como o famoso duelo entre Antero de Quental e Ramalho Ortigão, ou a visita de Antero ao historiador Jules Michelet em Paris – que marcaram a época.
Ao Nascer do SOL, Guilherme d’Oliveira Martins, administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian, antigo presidente do Centro Nacional de Cultura (onde mantém um papel ativo) e um dos mentores deste Dicionário, fala sobre a importância decisiva da Geração de 70 e explica por que considera que aqueles que se designaram por ‘Vencidos da Vida’ foram afinal vencedores.
Não esperava, confesso, que este Dicionário fosse uma obra tão ambiciosa. Na verdade, fico com a impressão de que é quase uma enciclopédia do século XIX português, ou pelo menos da segunda metade do século XIX.Da segunda metade. Foi isso que se pretendeu e teve a participação das melhores pessoas que nestes últimos 30 anos produziram sobre a Geração de 70, que foi absolutamente marcante. Tão marcante, na realidade, que a última obra de António José Saraiva, A Tertúlia Ocidental, se debruçou exatamente sobre as origens da Geração de 70.
A introdução é assinada por Eduardo Lourenço, que nos deixou em 2020. Este é, portanto, um projeto que já vinha muito de trás, não é? Disse-me 30 anos?Foram 30 anos e um dos grandes entusiastas e impulsionadores foi justamente o professor Eduardo Lourenço, que considerou que seria indispensável reunirmos um conjunto de elementos fundamentais em relação a esta geração. Miguel de Unamuno, o grande pensador espanhol, considerou que pode dizer-se que a Geração de 70 foi «a idade de ouro da cultura portuguesa» – estou a citar, não estou a comentar. E hoje percebemos isso, porque as repercussões são de facto enormes. Essa importância não se limita à segunda metade do século XIX. Quando vemos a Renascença Portuguesa, quando vemos a Seara Nova, quando vemos o Orpheu… Eduardo Lourenço costumava dizer que, apesar de Fernando Pessoa não citar Oliveira Martins, a verdade é que a História de Portugal está bem presente na Mensagem de Fernando Pessoa. Pessoa era assim, ocultava muitas vezes a base de onde partia. E o entendimento do professor Eduardo Lourenço, que foi um grande estudioso de Fernando Pessoa, e o autor de uma das obras fundamentais, que é Pessoa Revisitado, dizia que não é possível compreender a Mensagem e o pensamento histórico de Fernando Pessoa sem chegar à Geração de 70, designadamente à História de Portugal de Oliveira Martins.
Unamuno chamou-lhe ‘idade de ouro’. Existem condições particulares para o aparecimento desta constelação de autores? O terreno estava, por assim dizer, preparado ou é um daqueles acasos da história que acontecem de vez em quando?Não é um acaso da história porque é o produto da liberdade do século XIX. Temos de compreender que a revolução de 1820 iniciou o constitucionalismo, houve a guerra civil, mas criou-se um clima de liberdade de pensamento que não pode ser esquecido quando falamos da Geração de 70. Eu diria que em primeiro lugar a Geração de 70 é produto da liberdade. É curioso verificar que a proibição da conferência de Salomão Sáragga no Casino é absolutamente excepcional, porque as conferências tinham sido autorizadas e estavam a realizar-se. Antero de Quental fez duas conferências. Eça de Queirós fez uma conferência. Adolfo Coelho outra conferência. Apenas quando se chegou ao momento de tratar de uma questão religiosa, de algum modo, então suscitou-se essa excepcional proibição de uma iniciativa cultural. E é curioso verificar que, perante a proibição da conferência, o primeiro subscritor contra este atentado à liberdade é Alexandre Herculano, um romântico, um homem da primeira geração, que com Almeida Garrett constitui uma referência absolutamente fundamental. É Alexandre Herculano o primeiro a indignar-se e a escrever contra a proibição da conferência. Diz que não há valor maior numa sociedade que não seja a liberdade de expressão da palavra, a liberdade das ideias.
Podemos considerar as Conferências do Casino um pouco como a pedra de toque do movimento mas também como um sobressalto cívico?Exatamente. É um sobressalto cívico, mas com dimensão europeia. As Conferências do Casino têm lugar em Maio de 1871, exatamente no mesmo mês em que tem lugar em Paris a Comuna. Ou seja, a Guerra Franco-Prussiana termina, Napoleão III é derrotado, cai o império e dá-se a Comuna de Paris, o estado de sítio, com todas as consequências que conhecemos. E ao mesmo tempo, aqui em Portugal, mas de uma forma pacífica, que era basicamente através do debate de ideias, têm lugar as Conferências Democráticas. Aliás, quando lemos a introdução do professor Eduardo Lourenço, ficamos cientes de que as conferências do Antero de Quental no Casino são absolutamente cruciais. Portugal devia entrar na industrialização. E falar da industrialização é falar naturalmente do progresso e do desenvolvimento. Aliás, voltando para trás, as origens deste grupo estão em Coimbra. E é em Coimbra que tem lugar o primeiro grande debate, sobre a ‘Questão do Bom Senso e do Bom Gosto’, em que os jovens [Antero, Eça, Teófilo Braga] afirmam por uma nova escola. Uma nova escola que é o naturalismo – e por isso Eça de Queirós falará nas Conferências do Casino sobre a literatura a que aqui se chama ‘realista’, mas a que na Europa chamam ‘naturalismo’. E o símbolo desta situação é justamente o facto de se tornar indispensável abrir horizontes novos relativamente à sociedade europeia e à sociedade portuguesa. É disso que se trata.
As ligações de alguns dos membros da Geração de 70 ao estrangeiro vêm também reforçar essa ideia. Eça e Ramalho andam muito tempo lá fora. O próprio Antero também passa por Paris.É muito curioso esse episódio de Antero de Quental em Paris, uma vez que ele vai incógnito, sem se identificar, falar com Michelet, o grande historiador da Revolução Francesa. Sem dizer quem é, sem dizer o que faz aqui em Portugal, visita Michelet. E isso era para ele o fundamental: o reconhecer a importância da cultura francesa, e designadamente da herança da Revolução Francesa.
Falou das origens em Coimbra, há aquela grande polémica…Exatamente, a Questão do Bom senso e do Bom Gosto.
Entre o Antero e o Feliciano de Castilho. Depois, em 65, as Odes Modernas são vistas como uma espécie de um terramoto na literatura.Exato.
O sentido crítico é uma espécie de marca de água do movimento. Esse sentido crítico não era por vezes levado longe demais? Os membros da Geração de 70 não chegavam a ser injustos nas suas críticas?Eles reconheceram isso, nomeadamente ao simbolizar na figura do António Feliciano de Castilho o tempo passado. Eça de Queirós reconhecerá que houve algum exagero. Não estava em causa apoucar o papel que António Feliciano de Castilho teve. Feliciano de Castilho é uma figura fundamental na renovação, designadamente no plano do ensino. Foi o autor do primeiro método de leitura antes do celebérrimo método de João de Deus, feito a partir da Geração de 70. Repare: um dos membros mais notáveis da geração de 70 vai ser o autor do novo método, que é o método que chega aos nossos dias.
A Cartilha Maternal, pela qual eu aprendi a ler.É um método com uma longevidade extraordinária! Se falamos das pessoas da Geração de 70, temos que falar de João de Deus. Ora, o que tinha isto a ver com as ideias da Geração de 70? A necessidade de educar o povo. É muito curioso que Rafael Bordalo Pinheiro, que é o autor do Álbum das Glórias, vai pedir a Ramalho Ortigão que escreva sobre uma figura um pouco bizarra, que é Zé Povinho. O Ramalho Ortigão escreve sobre o Zé Povinho no Álbum das Glórias. E Ramalho termina o seu texto dizendo assim: «Todos aspiramos que o Zé Povinho, libertando-se das peias, dos limites, passe a ser o povo. Não queremos que seja Zé Povinho, nós queremos que ele se chame apenas povo». E é curioso que Rafael Bordalo Pinheiro representa o Zé Povinho a libertar-se da albarda e simultaneamente a dizer: «Queres fiado… Toma!». [risos]
Esse é outro dos aspectos interessantes do Dicionário. Quando pensamos na Geração de 70, pensamos sobretudo em literatura. Mas aqui temos outras dimensões – temos a arte, a filosofia, a medicina, a política…E a música. Lembramos, por exemplo, que A Portuguesa, o nosso hino, é escrito por um homem da Geração de 70, Henrique Lopes de Mendonça, e por um músico da Geração de 70, que é Alfredo Keil. Muitas vezes, na apresentação do Dicionário, têm perguntado: e as mulheres? Há duas mulheres extraordinárias que estão aqui bem presentes, e que tiveram um peso significativo. Falo de Maria Amália Vaz de Carvalho [escritora, a primeira mulher a ser aceite na Academia das Ciências de Lisboa], e Carolina Michaëlis de Vasconcelos, casada com Joaquim de Vasconcelos [portuense, fundador da História da Arte em Portugal]. E, portanto, há duas mulheres. Falámos de músicos, mas temos de falar também, naturalmente, da pintura, de Columbano Bordalo Pinheiro. E da caricatura. Rafael foi um grande caricaturista, ao nível mundial, podemos comparar as suas caricaturas às da Vanity Fair, ao melhor que se produzia na Europa. É algo muito completo. E é por isso que esta obra se torna fascinante. Ainda há pouco, falando com Pedro Mexia, recordava um texto notável que está neste Dicionário da autoria de João Bigotte Chorão, da relação entre Camilo e Eça. Nós aqui desmistificamos esse confronto. Não há confronto, há complementaridade. São duas grandes figuras. Diversas, naturalmente, porque Eça começa a lançar as bases do novo naturalismo, mas depois termina como simbolista. Falei há pouco de Coimbra, do Bom Senso e Bom Gosto. Mas não podemos esquecer depois o Cenáculo, em Lisboa, em que Antero se encontra com Jaime Batalha-Reis e fazem uma revista extraordinária, onde primeiro vai ser publicado O Crime do Padre Amaro, que é um exemplo daquilo que, de novo, se fazia e se pensava. Depois do Cenáculo, vai haver as Conferências do Casino e um movimento político importante de renovação, a Vida Nova, com sede no Porto. É preciso salientar que o Porto tem aqui uma importância fundamental, é uma cidade que marca justamente a cultura e a vida deste tempo. E depois temos o último grupo, que acabou designado como ‘Os Vencidos da Vida’, mas que nasce como um nome irónico. Vencido é a tradução do francês battu. Battu não é exatamente vencido no sentido português do termo.
Seria algo mais próximo de ‘maltratado’?Maltratados, exatamente. Foram à luta, foram maltratados.
Porque ficaram conhecidos como ‘Os vencidos da vida’, mas a obra que nos deixam é um triunfo.E por isso eu comecei logo por falar de Unamuno, um grande intelectual europeu, reconhecido universalmente, e que diz: «Se houve geração de ouro em Portugal, ela foi a Geração de 70». Daí o tal aspecto irónico da palavra vencido. Muitas vezes usava-se o latim dizendo assim: ‘Victus sed victor’. ‘Vencido, mas vencedor’. A verdade é que vemos terminar o século XIX com uma grande decadência, mas depois o século XX vai, de algum modo, renascer. E é por isso que grandes intelectuais do século XX foram buscar as suas bases e consideraram que a Geração de 70 era uma geração-mestra. E voltamos a António José Saraiva, ou a António Sérgio, que de facto reconheceram a importância desta geração. É a razão pela qual este Dicionário, partindo das diversas situações e das diversas realidades, vem revelar aquilo que são as bases do século XX e, no fundo, até da democracia.
Referiu O Crime do Padre Amaro. Notamos entre estes intelectuais uma relação ambígua com a religião. Por um lado fazem fortes críticas à Igreja, mas depois…Sobretudo a crítica ao clericalismo.
Eça escreve O Crime do Padre Amaro, mas também as Lendas de Santos.Por isso nós temos que tirar uma lição. Para esta geração, o clericalismo era mau conselheiro. O que não significava que não fosse necessário, e nós temos exemplos evidentes. Eduardo Lourenço diz que há um forte misticismo em Antero de Quental, que lhe dá peso e importância, e que leva a que autores do século XX, como Sophia de Mello Breyner ou Ruy Belo, tenham partido de Antero de Quental para a riqueza da sua produção literária.
Eu ia referir ainda o exemplo de Oliveira Martins, que é um crítico violento da Igreja – em particular dos Jesuítas – e, no final da vida, acaba por receber os últimos sacramentos.O que dá conta da complexidade. Por isso nós começamos este dicionário falando de uma ‘geração paradoxal’. O que quer dizer uma geração paradoxal? É uma geração que não teme a contradição, não teme a crítica, mas está disponível sempre para olhar a complexidade. O pensamento humano é sempre dominado por vários fatores. Não podemos ceder a uma tentação redutora ou esquecer a diversidade da produção literária. Tem sido referida a influência n’O Crime do Padre Amaro, de La Faute de l’Abbé Mouret, de Zola. E Eça de Queirós esclarece-o: era indispensável abanar as ideias, para que houvesse sentido crítico, era indispensável não haver dogmatismo.
Folheando o Dicionário, fico com uma forte impressão de que a entrada mais longa, com 14/5 páginas, é a que diz respeito ao suicídio.É um texto muito importante do professor João Fatela – e muito revelador, porque não é simplificador. Unamuno simplificou quando falou do «país de suicidas». Isso deveu-se a ter havido uma circunstância absolutamente excepcional da convergência de Camilo Castelo Branco, de Antero de Quintal, de Soares dos Reis, de Manuel Laranjeira, que se tinham matado. Mas João Fatela, como especialista que é, faz um texto notável e muito fundamentado. E é um texto muito interessante, que permite abrir pistas positivas – porque o tema do suicídio é sempre um tema muito complexo. Nós, leitores, lembramo-nos que Séneca foi o grande teorizador sobre o suicídio.
E não lhe parece que a extensão desta entrada pode querer dizer alguma coisa também sobre o pessimismo que paira sobre a Geração de 70?É possível. A Geração de 70 não nos deixou nenhuma chave para resolver o problema. Várias décadas depois, Gramsci fala-nos do pessimismo do pensamento e do otimismo da vontade. De novo voltamos ao paradoxo, à geração paradoxal. É uma geração paradoxal. A um tempo pessimista, neste sentido do pessimismo do pensamento, consequência naturalmente de sermos críticos, mas simultaneamente tem o otimismo da vontade. E essa é a grande lição. Eduardo Lourenço refere-o muito claramente na sua introdução, quando diz que nós muitas vezes temos a tentação de olhar esta geração apenas no aspecto negativo e esquecemos que foi uma geração que criticou para sermos melhores.
Jornal Sol