Careto: uma tradição de gerações

De fatos coloridos, máscaras no rosto e chocalhos à cintura. Assim são os Caretos de Podence que, todos os anos, por ocasião do Carnaval, saem à rua para “espalhar o terror” e chocalhar as mulheres, sejam elas novas ou velhas.
Esta é uma tradição que passa de geração em geração. Muitos dos caretos usam os hoje os fatos que eram dos avós ou dos pais, porque ser careto está-lhes no sangue.
É o caso de Rafael Costa, de 35 anos, mais conhecido por Rafael de Podence. É careto “desde que me lembro, devia ter uns quatro anos quando comecei a acompanhar os caretos maiores”.
“O meu primeiro fato era simples, com umas calças de fato de treino. Por volta dos 12 anos, pedi à minha mãe que me fizesse um fato mais a sério”, recorda. Mas “disse-me que se queria um fato tinha que o fazer. Então ensinou-me a fazer as franjas e a costurar. Fiz tudo nas férias da escola e ainda são os fatos que uso hoje em dia”.[/block]
Herdou do avô o gosto em ser careto. “Ele fazia máscaras”, refere, mas também os irmãos saíam à rua. “É uma coisa que passou de geração em geração, nem se consegue explicar o que é ser careto”. Ainda assim, tenta fazê-lo.
E admite que “já chocalhei muitas mulheres”. Aliás, “conheci a mãe do meu filho assim”, confessa.
Também Tomás Carneiro, de 22 anos, começou a vestir-se de careto em criança. “Comecei como facanito e não parei”, conta.
“Quando vestimos o fato transformamo-nos. Sentimo-nos à vontade para fazer as trafulhices todas”, assume, acrescentando que “a primeira vez que vesti um fato acho que tinha três anos”. Desde então, “visto-me sempre de careto”, afirma Tomás Carneiro, salientando que “os fatos passam, também, de geração em geração. Eu agora uso o do meu pai, que já era do meu avô”.
Ser careto, assume, “é uma grande responsabilidade”, sobretudo agora que “somos património da humanidade”.

“Temos que ter mais força para mostrar os caretos ao mundo”, vinca, enaltecendo o “bom trabalho que temos vindo a fazer” nesse sentido, desde logo porque “todos os anos vem mais gente a Podence”.
Outro dos caretos dá pelo nome de José Luís Desidério. Para encontrá-lo basta visitar a Taberna do Facanito, nome escolhido pelo facto de ser careto desde pequeno, ou seja, foi facanito. Com 41 anos, José Luís “tinha três anos quando comecei a ir para a rua”. Herdou a tradição do pai, mas sobretudo dos avós.
Hoje, “não me visto tantas vezes quantas gostaria, mas faço sempre por ir chocalhar um bocadinho”, afirma. Consigo leva as filhas, de 21 e 15 anos, que, tal como ele, “andam nisto desde pequeninas”.
“Qualquer criança que vista o fato, já não consegue largá-lo. Foi o que aconteceu com elas”, refere.
A mulher, Catarina, fica a ver. “Como não sou de cá, gosto mais de ver. Mas eles adoram isto. São tímidos, mas quando se vestem de caretos viram o diabo (risos)”, explica.
E longe vão os tempos em que ser careto era coisa de só dos homens. Hoje em dia, também as mulheres se mascaram. É o caso de Cecília Reis Rosa, que se veste de careto desde 1968, já lá vão 57 anos.
“A primeira vez que vesti o fato foi depois de ser maltratada por um careto. Deixou-me as nádegas todas negras, apalpou-me. Na minha família não havia fatos de careto, até porque a minha mãe dizia que eram a encarnação do diabo, mas o meu pai mandou-me vestir de careto para me defender”. E assim foi.
Sobre esta tradição, lembra que “antigamente andavam pelos telhados, partiam portas, andavam aos pulos, ficavam cansados e iam para as adegas beber ou roubar chouriças, galos e galinhas para fazer tainadas, partiam tudo”, mas isso tinha um propósito, “chegarem à dama amada”.
Reconhecidos em 2019 como património cultural imaterial da Humanidade, pela Unesco, os caretos de Podence vão a todo o país e além-fronteiras para divulgar esta tradição. Quanto ao Entrudo Chocalheiro, crê-se que a sua origem está relacionada com antigos rituais pagãos, que celebravam o final do inverno e a renovação da natureza e a fertilidade dos campos.
Todos os anos, entre o domingo gordo e a terça-feira de Carnaval, a pequena aldeia de Podence transforma-se e acolhe milhares de pessoas, para verem de perto os caretos correr rua acima, rua abaixo, ao mesmo tempo que chocalham as mulheres. Por estes dias, o ditado “É Carnaval, ninguém leva a mal” faz todo o sentido.
CARETOS DA TORRENão tão conceituados como os de Podence, os Careto da Torre de Dona Chama, no concelho de Mirandela, saem à rua no Natal, por ocasião da Festa de Santo Estêvão. Os trajes são igualmente coloridos, com franjas e chocalhos. Na cara, levam uma máscara de latão, decorada com as cores vermelho e preto.

As máscaras são hoje feitas por Adérito Teixeira, artesão de 73 anos, também ele careto. “Lembro-me de ter cinco anos e já haver caretos”, conta, admitindo que “era uma festa muito importante, com muita gente”.
“Há muitos anos, os cristãos, para tentarem expulsar os mouros daqui, roubaram-lhes os burros todos, porque assim eles não tinham como trabalhar a terra nem transportar a comida. E conseguiram que fossem embora”. Esta tradição é hoje encenada no dia de Natal, como forma de preservar uma parte da história da freguesia de Torre de Dona Chama. Além disso, é feito um desfile das Madames, em que os homens se vestem de mulheres e vice-versa, com o objetivo de divertir a população.
No dia 26 de dezembro, após a missa em honra de Santo Estêvão, acontece a “corrida da Mourisca”, que vai da igreja ao largo da vila. Representa a luta entre os cristãos e os mouros, com o rei e a rainha a serem seguidos pelas mouriscas, pelos caretos e pelos caçadores. Os caretos são responsáveis por impedir, com as varas, o avanço dos cristãos, enquanto as Mouriscas têm que capturar os caçadores.
Voltando aos caretos, Adérito Teixeira conta que “os fatos vão passando de uns para os outros. Alguns já têm muitos anos”. As máscaras, “sou eu que as faço. Primeiro eram de cartão, depois passaram a ser de latão. Entretanto, desapareceu muita coisa e eu, desde que me reformei, dediquei-me a fazer máscaras”.

“Na minha família, os meus tios e os meus irmãos eram caretos, mas só na altura da festa.
Agora é que temos feito atividades ao longo do ano, para dar a conhecer a nossa tradição e a nossa festa”, conta Adérito, mostrando-se, contudo, receoso com o futuro, porque “há pouca gente a querer dedicar-se a isto”, motivo pelo qual “isto qualquer dia acaba”.
Firmino Lopes veste, com orgulho, o fato de careto “desde que me lembro”. É assim desde criança, admitindo que “hoje a festa é completamente diferente”.
É também da opinião que, tirando os dias da festa, “não há quem queira vestir-se de careto”, pedindo que “as pessoas se unam em torno desta tradição, para não a deixar morrer”.
E se depender de Susana Lopes, de 47 anos, a tradição é para continuar. Emigrante na Suíça durante muitos anos, regressou a Portugal há pouco tempo. Natural de uma aldeia vizinha, mas a viver atualmente em Torre de Dona Chama, apaixonou-se pelos caretos “há coisa de meio ano”. “Eu trabalhava num lar de idosos e decidimos fazer algo diferente.
Lembrei-me que havia os caretos aqui e conseguimos que lá fossem. Desafiaram-me a vestir o fato e gostei”.
Desde então, não largou o grupo. “Isto faz parte da nossa cultura, da nossa história. É importante mantermos as nossas tradições e dar-lhes valor. Comecei em jeito de brincadeira, mas agora não vou parar”, vinca.
“Se toda a gente disser que não quer fazer parte, isto acaba. Temos que lutar contra isso”, reforça.
PATRIMÓNIOGoste-se mais ou menos dos caretos, a verdade é que fazem parte da identidade de Trás-os-Montes. No caso dos Caretos de Podence, a sua relevância foi reconhecida em 2019, ao serem considerados Património Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. Já os Caretos da Torre são, desde 2022, Património Cultural Nacional.[/block]
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