Com bombas: Foi assim que o Sol retirou a atmosfera e a água de Marte.

No complexo quebra-cabeça do passado de Marte, há uma peça que os geólogos planetários tentam encaixar há décadas. No início de sua existência, o planeta vermelho, agora árido e seco, pode ter sido um mundo agitado e aquático, com rios caudalosos alimentando lagos tão grandes quanto mares. Vastas extensões de água que talvez abrigassem a promessa de vida.
Hoje, porém, o mundo vizinho nada mais é do que um deserto desolado, árido e congelado, onde a água, na forma de gelo, é escassa e nada mais é do que o fantasma de um passado outrora úmido. Para onde foi toda a água de Marte e por quê? Esta é a pergunta, a peça que falta no quebra-cabeça que há muito atormenta os cientistas.
Agora, após mais de uma década de observações e análises meticulosas, a missão MAVEN (Mars Atmosphere and Volatile Evolution) da NASA, em órbita de Marte desde novembro de 2013, acaba de revelar um mecanismo elusivo que pode ser a peça que faltava. Um processo de "escape atmosférico" chamado " pulverização catódica " pode ser a chave para entender como Marte perdeu a maior parte de sua água. A descoberta acaba de ser publicada na revista " Science Advances ".
A superfície marciana não conta história: é atravessada por cicatrizes inconfundíveis de um passado muito mais úmido. Vales que já foram rios, leitos de lagos secos e minerais que só se formam na presença de água são testemunho direto de uma época em que a água líquida fluía livremente pelo planeta.
E sabemos que, para preservar toda essa água líquida, Marte deve ter tido, no passado, uma atmosfera muito mais densa do que a atual, semelhante à da Terra, capaz de reter calor e manter alta pressão superficial. Entender quando e como essa atmosfera diminuiu é essencial para reconstruir a evolução climática do Planeta Vermelho e determinar, por sua vez, por quanto tempo ele pode ter permanecido habitável.
Nos últimos anos, cientistas acumularam evidências crescentes de que o vento solar, o fluxo constante de partículas carregadas emitidas pelo Sol, pode ser responsável pela perda de grande parte da atmosfera marciana. Em abril de 2022, a comunidade astronômica internacional testemunhou em primeira mão como uma poderosa erupção solar "passou por cima" de Mercúrio, arrancando parte de sua atmosfera em um único golpe . Foi um episódio violento e pontual, diferente e muito mais poderoso do que o vento solar, que é um fluxo contínuo e incessante, mas o evento deixou bem clara a capacidade da nossa estrela de "arrancar" seus planetas.
A pulverização catódica detectada pela missão MAVEN é um processo de escape no qual átomos são expelidos da atmosfera por partículas carregadas de energia. "É como jogar uma bomba em uma piscina", explica Shannon Curry, pesquisadora principal da MAVEN no Laboratório de Física Atmosférica e Espacial da Universidade do Colorado em Boulder e principal autora do estudo. "Mas a bomba, neste caso, são os íons pesados colidindo com a atmosfera muito rapidamente e espirrando átomos e moléculas neutros." Trata-se, portanto, de um "bombardeio" constante de minúsculos tiros de canhão que, como a água de uma piscina, "espirram" átomos e moléculas da atmosfera superior de Marte, libertando-os da atração gravitacional do planeta e lançando-os para o espaço.
Embora os cientistas já tivessem encontrado pistas indiretas para essa "pulverização catódica", eles nunca a haviam observado diretamente. Evidências anteriores, na verdade, vieram da análise de isótopos de argônio na atmosfera superior de Marte. Isótopos mais leves se depositam em camadas mais elevadas na atmosfera do que seus equivalentes mais pesados. Descobriu-se que havia muito menos isótopos leves do que isótopos pesados de argônio na atmosfera marciana, e descobriu-se que esses isótopos mais leves só podem ser removidos por pulverização catódica. "Foi como se tivéssemos encontrado as cinzas de uma fogueira", explica Shannon Curry. "Mas queríamos ver o fogo real — neste caso, a pulverização catódica — diretamente."
Para testemunhar a pulverização catódica em ação, a equipe da MAVEN precisou de medições simultâneas, no local e no momento certos, a partir de três instrumentos a bordo da espaçonave: o Analisador de Íons do Vento Solar, o Magnetômetro e o Espectrômetro de Massa de Gás Neutro e Íons. Os pesquisadores também precisaram de medições tanto no lado diurno quanto no lado noturno do planeta em baixas altitudes, o que levou anos de observação.
Por fim, a combinação de dados desses instrumentos permitiu aos autores do estudo criar um novo tipo de mapa de pulverização catódica de argônio em relação ao vento solar. Este mapa revelou a presença de argônio em altas altitudes, nos locais exatos onde partículas energéticas atingem a atmosfera e "pulverizam" argônio, mostrando a pulverização catódica em tempo real. Os pesquisadores também descobriram que o processo é quatro vezes mais abundante do que o previsto anteriormente e que essa taxa aumenta durante tempestades solares.
A observação direta da pulverização catódica na atmosfera marciana confirma que esse processo, como se suspeitava, foi uma das principais fontes de perda atmosférica no início da história de Marte, quando a atividade do Sol era muito mais intensa. É importante lembrar que, em seus primórdios, o jovem Sol era mais ativo e emitia fluxos de vento solar mais fortes e frequentes do que hoje, o que teria amplificado o efeito da pulverização catódica.
"Esses resultados", diz Curry, "estabelecem o papel da pulverização catódica na perda da atmosfera de Marte e na determinação da história da água em Marte". A descoberta ajudará os cientistas a finalmente entender as condições que permitiram a existência de água líquida na superfície marciana e as implicações que isso teve para a habitabilidade do planeta bilhões de anos atrás. Se Marte alguma vez abrigou vida, ela provavelmente se desenvolveu quando o planeta era mais quente e úmido. A pulverização catódica nos oferece uma janela para o passado de Marte e nos permite entender melhor por quanto tempo o Planeta Vermelho pode ter sido um ambiente favorável à vida.
Além disso, este estudo também pode ter implicações na determinação da habitabilidade de outros exoplanetas. Se um exoplaneta possui atmosfera e é exposto a um forte vento estelar, a pulverização catódica pode ser um mecanismo importante de perda atmosférica, afetando seu potencial de abrigar vida.
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