O partido de um homem só que chegou ao poder

[Este texto faz parte de uma série que o Observador está a publicar sobre os terramotos políticos provocados pelos partidos antissistema de direita radical em diferentes países da Europa Ocidental. Pode ler também sobre os casos da Alemanha, Espanha, Reino Unido, Grécia, França, Suécia e Itália]
As pessoas normais nem sequer se atrevem a dizer certas coisas. Mas o Wilders di-las. Tenho a estimativa de que 80% das pessoas pensam o que ele diz. Alguma coisa tem de mudar. Estou disposto a dar-lhe uma oportunidade para os próximos quatro anos.”
Esta era a opinião do pensionista Riny van Boxtel, a apenas alguns dias das legislativas de 2017 nos Países Baixos. À Der Spiegel, este antigo trabalhador num matadouro não tinha problemas em assumir que ia votar em Geert Wilders, o polémico líder do Partido pela Liberdade (PVV na sigla original) conhecido pelas suas opiniões críticas do Islão e anti-imigração.
O PVV já existia há mais de dez anos, mas ia registando um crescimento de eleição para eleição. Em 2017, seria o segundo partido mais votado, mas o vencedor (o liberal Partido Popular pela Democracia e Liberdade, VVD) e os restantes partidos deixaram claro que não queriam contar com Wilders para formar governo. Há muito que Wilders fazia manchetes, com a perspetiva de que um partido de direita radical e antissistema pudesse chegar ao poder.

▲ Fundado em 2006, o PVV de Geert Wilders venceu as legislativas de 2023
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Votado a mais anos na oposição, o PVV enfrentou algumas dificuldades nos anos seguintes — nas legislativas de 2021 perdeu três deputados, por exemplo. Mas Wilders não estava disposto a baixar os braços e a perseverança compensou-o: em 2023, o seu partido venceu as legislativas e atingiu um valor recorde de 37 deputados, no fragmentado Parlamento neerlandês. Wilders liderou as negociações para formar um governo (que duraram seis meses) e alcançou um acordo. Mas não ficou como primeiro-ministro, nem sequer com nenhuma pasta ministerial.
De fora do poder, mas com total influência sobre o executivo, ora tem moderado as suas propostas (abandonou as ideias de banir o Alcorão e proibir a construção de mesquitas, por exemplo), ora ameaça deitar abaixo o governo por não aplicar medidas mais radicais na imigração e leis de asilo. “Alguns dizem que sou o Trump neerlandês, outros chamam-me Geert Milders”, resumiu o próprio, referindo-se à alcunha criada a partir da palavra mild, que significa “brando” ou “moderado” em holandês. “A verdade está algures no meio.”
O PVV entrou na cena política em 2004 e estreou-se em eleições nas legislativas que aconteceram dois anos depois. O resultado não foi de somenos, num Parlamento altamente fragmentado já à altura: quinto lugar (dez partidos elegeram deputados) e nove mandatos atribuídos.
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Nas europeias de 2009, Geert Wilders — à altura defensor de uma forte mensagem eurocética — dispara para o segundo lugar. Nas eleições locais de 2010, o PVV concorre apenas a duas localidades, mas vence numa delas (Almere) e fica em segundo na outra (Haia). E nas legislativas de 2010 alcança um resultado estrondoso, numa altura em que os partidos antissistema ainda não atingiam grandes valores na maioria dos países europeus: é o segundo partido mais votado, com 15% dos votos, e passa de 9 para 24 deputados.
O resultado faria com que o PVV acabasse por assumir as primeiras responsabilidades do poder. O novo governo, liderado por Mark Rutte (PVV), acabaria por ter estabilidade graças ao apoio parlamentar do Partido pela Liberdade — um entendimento que o líder dos trabalhistas, Job Cohen, classificaria como uma oportunidade para Wilders ser “o marionetista, controlando os fios atrás do palco, com todas as vantagens e nenhuma da responsabilidade”. Em 2012, perante novas medidas de austeridade propostas por Rutte, Wilders retira o apoio ao governo. A decisão não joga a favor do PVV, que é castigado nas urnas nas eleições antecipadas: passa a terceiro classificado e perde nove deputados.

▲ O primeiro-ministro Mark Rutte (VVD) chegou a ter um governo apoiado pelo PVV
ROBIN VAN LONKHUIJSEN/EPA
Na votação seguinte, em 2017, Rutte deixa claro que, em caso de vitória, não voltará a confiar no partido de Wilders. “As hipóteses não são de 0,1%, são de zero”, declarou. Antes disso, o líder do PVV já tinha partido para o ataque, ao declarar que Rutte “é um cobarde que vai para a cama com qualquer um, desde que consiga ser primeiro-ministro.”
Não há entendimento pessoal, mas em termos de ideias há uma aproximação. O primeiro-ministro e líder dos liberais faz uma campanha onde radicaliza o discurso sobre a imigração. Num anúncio de jornal, escreve uma carta aberta aos imigrantes “hostis” ao país, onde lhes diz: “Comportem-se normalmente ou vão-se embora.” Numa entrevista, diz que os jovens filhos de turcos com “comportamentos antissociais” devem “pirar-se para a Turquia”.
A tensão da altura com o governo turco leva a fortes manifestações e declarações ácidas de ambos os líderes, mas o ambiente contribui para que Rutte seja reeleito. “Rutte e o VVD estão a pescar no lago do PVV”, declara à Der Spiegel o cientista político Tom van der Meer, da Universidade de Amesterdão. E, no entanto, o PVV consegue recuperar. Volta a ficar atrás de Rutte, mas em segundo lugar, e elege 20 deputados. Torna-se a principal força da oposição.
A ameaça de outro partido antissistema que se tornou numa vantagemMas um novo partido antissistema estava a surgir no horizonte e a ameaçar o crescimento de Wilders: o Fórum pela Democracia (FvD), de Thierry Baudet. Nas eleições locais de 2019, o novo partido recolhe quase 15% dos votos. “Sou ideologicamente contra o mercado interno, as fronteiras abertas, o euro, contra tudo”, declara o seu líder.
Geert Wilders enfrenta então o seu momento mais complicado. Fica em décimo lugar nas eleições europeias de 2019, muito distante do partido de Baudet, que na estreia elege três eurodeputados. Dias depois, o FvD será a força política mais votada nas eleições para o Senado, elegendo 86 representantes. Muitos se apressaram a declarar a morte do PVV — mas estavam errados.

▲ O partido FvD de Thierry Baudet chegou a ameaçar o PVV, mas perdeu fôlego entretanto
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Nos meses seguintes, o Fórum pela Democracia entra em modo de auto-destruição, dividido em temas como a vacina para a Covid-19 e escândalos de antissemitismo. Os três eurodeputados acabam por abandonar o partido e a maioria dos senadores desvincula-se de Baudet. “Os eleitores fartaram-se da instabilidade do FvD”, resume ao Politico Koen Vossen, historiador político da Universidade de Radboud. A grande maioria vira-se novamente para Wilders — num efeito semelhante ao que Éric Zemmour teve sobre Marine Le Pen em França, moderando a imagem do PVV por comparação.
Wilders adota então uma nova estratégia para as legislativas de 2023. As suas ideias mais polémicas, diz, serão colocadas “no congelador”. A retórica anti-Islão passa a ser substituída por uma mensagem anti-imigração, apresentada como resposta aos problemas sociais enfrentados por muitos holandeses. Não é que os números da imigração nos Países Baixos sejam muito maiores do que nos países vizinhos — segundo o Die Zeit, em 2023 a proporção de requerentes de asilo era de duas candidaturas por cada mil habitantes, um valor inferior a dez outros países da União Europeia (UE).
Mas há uma crise específica que beneficia em muito o discurso do líder do PVV: a crise da habitação, que Wilders cavalga como sendo ainda mais prejudicada pela habitação concedida aos requerentes de asilo. A média de preço das casas no país atinge o valor de 452 mil euros, com a lista de espera para habitação social a durar em média sete anos (e a chegar quase aos 20 em cidades como Amesterdão). Os eleitores não têm dúvidas: nove em cada dez dizem haver uma crise habitacional e sete em cada dez afirmam que a posição dos partidos sobre o tema influencia em muito o seu sentido de voto.
“Wilders apresenta-se como estando ao lado dos pobres: é aquilo a que por vezes se chama de chauvinismo económico. Ele argumenta que se deve ajudar as pessoas com mais dificuldades, mas só aquelas a quem chama ‘Henk e Ingrid’, o nome neerlandês que usa para os seus eleitores. E isso não se aplica ‘ao Mohammed e à Fatima’.”
Matthis Rooduijn, professor da Universidade de Amesterdão
O tema foi uma das principais razões para o resultado da eleição de 2023. O PVV não recupera apenas a votação de antes; é mesmo o vencedor das eleições, conquistando 37 mandatos. Wilders é especialmente popular entre os eleitores mais jovens e mobiliza mais de 10% dos que se abstiveram nas legislativas anteriores.
À semelhança do que acontece noutros países onde os partidos de direita radical crescem, a retórica de Geert Wilders conquista muitos dos que se sentem prejudicados não apenas pelo preço das casas, mas por dificuldades económicas no geral, e por desconforto com a presença dos imigrantes. “O PVV não é exatamente um partido de esquerda em termos socioeconómicos, mas também não é bem um partido de direita”, resume ao The Guardian Matthis Rooduijn, professor da Universidade de Amesterdão. “Wilders apresenta-se como estando ao lado dos pobres: é aquilo a que por vezes se chama de chauvinismo económico. Ele argumenta que se deve ajudar as pessoas com mais dificuldades, mas só aquelas a quem chama ‘Henk e Ingrid’, o nome neerlandês que usa para os seus eleitores. E isso não se aplica ‘ao Mohammed e à Fatima’.”
A isso soma-se um descontentamento com a política em geral — um estudo da consultora Motivaction aponta que 61% dos inquiridos veem os políticos como “elitistas e desonestos em quem não se pode confiar”. E, na eleição de 2023, acrescentou-se um outro elemento: a nova líder do VVD, Dilan Yesilgöz (filha de turcos), muda a política do partido face ao PVV, acabando com o cordão sanitário de 2017 e admitindo uma coligação com Wilders. O efeito, de acordo com os especialistas, teve o efeito contrário do que desejava: “Tornou mais atrativo para os eleitores apoiarem o partido de Wilders, porque a hipótese de influenciar a política do governo estava finalmente à vista”, notou à BBC a professora de ciência política Sarah de Lange.
A vitória do PVV abalou as fundações da política neerlandesa. Mas, como veremos adiante, a experiência de governar revelou-se mais complexa do que fazer campanha.
O político contra “a cultura atrasada do Islão” que acabou protegido 24 horas por dia — e a dominar por completo um partidoAntes de olhar para o presente, vale a pena olhar para o passado para compreender de onde surgiu o PVV.
Antes de Geert Wilders, houve Pim Fortuyn. O líder político do partido A Lista de Pim Fortuyn era uma figura fora da caixa: forte crítico do Islão — chamava-lhe uma “cultura atrasada” —, falava abertamente sobre o facto de ser homossexual. Uma vez, segundo um perfil da New Yorker, chegou a rejeitar as acusações de racismo respondendo “Não odeio os homens árabes, até durmo com eles”.

▲ Pim Fortuyn, o político anti-Islão que foi assassinado em 2002
ANP/AFP via Getty Images
A nove dias das eleições para o Parlamento de maio de 2022, o partido de Pim Fortuyn estava em primeiro lugar nas sondagens. Mas, nesse dia 6 de maio, Pim Fortuyn foi assassinado, atingido por seis tiros num parque de estacionamento. O homicida era um ativista pelos direitos dos animais. A morte à queima roupa de um político deixou os Países Baixos em choque; a Lista de Pim Fortuyn ficou em segundo lugar nas legislativas e o partido acabou por fazer parte do governo de coligação que se lhe seguiu.
“Há uns Países Baixos pré-Fortuyn e pós-Fortuyn”, decretou o sociólogo Paul Scheffer, em declarações ao Le Monde, sobre a influência do político. À altura, Geert Wilders era conselheiro do partido liberal VVD, mas já estava em choque com aquela força política. Em 2004, fez um anúncio público: exigia que os liberais não fizessem governos com a esquerda, que os imigrantes que não se integrassem fossem deportados e que a Turquia nunca poderia entrar na UE. Acabou por bater com a porta quando percebeu que estava em minoria.
Poucos meses depois, um novo homicídio político abalava o país: o cineasta Theo van Gogh, outro conhecido crítico do Islão, foi esfaqueado por um holandês de origem marroquina, Mohammed Bouyeri. Durante a investigação criminal, foi descoberto que Bouyeri também tinha planos para atacar Wilders, o que colocou o político imediatamente sob proteção policial durante 24 horas por dia. Dois anos mais tarde, Geert Wilders funda oficialmente o PVV.
Começa o seu caminho como líder partidário, ocupando o espaço anti-Islão deixado pelo partido de Pim Fortuyn. Em 2008, Wilders faz um filme chamado Fitna (“Rebelião”), altamente crítico do islamismo. Começa a fazer várias declarações polémicas e semelhantes às de Fortuyn, como a de que o Islão é “a ideologia de uma cultura atrasada”. Declara que o Alcorão é “fascista” e compara-o ao Mein Kampf de Adolf Hitler. “Chega de mesquitas, de escolas islâmicas, de imãs”, diz. “Nem todos os muçulmanos são terroristas, mas quase todos os terroristas são muçulmanos.” O seu problema, garante, é com a própria religião: “Tenho um problema com a tradição, a cultura, a ideologia islâmicas. Não com os muçulmanos.” Mais uma vez, seguindo a linha de Fortuyn, aponta o Islão como uma ameaça aos homossexuais e às mulheres.
A sua visão sobre o Islão começou a formar-se ainda na juventude, quando trabalhou numa quinta comunitária em Israel, onde recebia cinco dólares à hora. Nos anos seguintes, fez várias viagens a países árabes como o Egipto, a Jordânia e a Síria. Essas duas experiências moldaram a sua opinião: “Quando os egípcios falavam sobre Israel, podia ver-se o ódio nos olhos deles”, declarou. Os países árabes que visitou, diz, eram “maravilhosos”, mas marcados por uma religião que passou a detestar, muito pela postura anti-israel que encontrou neles. “As pessoas eram muito amigáveis e simpáticas para mim”, disse numa entrevista ao canal neerlandês Nos. “Davam-me pão e chá, mas também ouvi rapazes da minha idade com imenso ódio contra Israel.”
O regime de segurança apertado manteve-se ao longo dos anos porque Wilders continuou a ser alvo de ameaças. Em 2009, por exemplo, foi o foco de 303 das 424 ameaças feitas a políticos nesse ano. Foram declaradas fatwas sobre ele. Um dos ramos da Al-Qaeda chegou a incluir o seu nome numa lista de figuras que deveriam ser atacadas. Em 2018, um homem paquistanês foi condenado por ter oferecido uma recompensa de mais de 20 mil euros a quem assassinasse Wilders.
O ódio ao Islão acentuar-se-ia com as consequências das ameaças de que ia sendo alvo e a proteção policial a que tinha de ser sujeito. A viver em casas seguras, mudava de localização todas as noites e não podia ver a mulher — uma diplomata húngara de origem judaica — todos os dias. “[Os seguranças] estavam em todo o lado, desde os momentos mais íntimos como funerais até à campanha. Sempre. Isso nem sempre é fácil”, lamentaria. Por vezes tinha de usar disfarces como bigodes falsos e uma peruca.
No livro que publicou em 2012, intitulado Marcado para morrer, Wilders deu pormenores sobre o seu dia a dia: “Quando vou ao cinema, esvaziam as últimas filas para mim e para os meus guardas”, escreveu. “Chegamos depois de o filme já ter começado e saímos antes de acabar. A última vez que vi o início ou o final de um filme num cinema neerlandês, George W. Bush ainda estava no primeiro mandato como Presidente dos EUA”.
O regime de segurança apertado manteve-se ao longo dos anos porque Wilders continuou a ser alvo de ameaças. Em 2009, por exemplo, foi o foco de 303 das 424 ameaças feitas a políticos nesse ano. Foram declaradas fatwas sobre ele. Um dos ramos da Al-Qaeda chegou a incluir o seu nome numa lista de figuras que deveriam ser atacadas. Em 2018, um homem paquistanês foi condenado por ter oferecido uma recompensa de mais de 20 mil euros a quem assassinasse Wilders.
E quanto mais ameaças recebia, mais o político radicalizava o discurso. Chegou a propor um imposto sobre “as toalhas na cabeça” (leia-se o véu islâmico) e a falar da “escumalha marroquina”. Seria levado a tribunal por duas vezes por discurso de ódio — seria ilibado na primeira e condenado (mas sem pena aplicada) na segunda.
A reclusão a que foi sujeito para se proteger terá contibuído para se radicalizar ainda mais. É pelo menos essa a opinião de um dos seus irmãos, Paul Wilders, que deu várias entrevistas ao longo dos últimos anos. “Até nas nossas celebrações de família os guarda-costas estão lá”, garantiu.

▲ Wilders está sob vigilância 24 horas por dia. Aqui, na cabine de voto, está com dois dos seus seguranças
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Sobre as posições políticas do irmão, falava num misto de estratégia política e convicção pessoal: “Depois do 11 de setembro e dos homicídios do político Pim Fortuyn em 2002 e do cineasta Theo van Gogh em 2004, ele percebeu que havia um vazio na paisagem política e começou a tentar tornar-se conhecido como um opositor do Islão. Depois vieram as ameaças de morte e, quando se precisa de segurança constante por causa disso, uma pessoa torna-se ainda mais paranóica.”
O cientista político Cas Mudde, especialista nas direitas radicais europeias, não tem dúvidas de que, para Wilders, o anti-islamismo é pessoal. “É impossível que viver sob proteção 24 horas por dias e em casas seguras durante 13 anos não o tenha afetado”, declarou o académico ao Washington Post. “Ele endureceu ainda mais contra o Islão e aqueles que o ‘defendem’. A sua luta contra o ‘Islão global’ tem um claro aspeto pessoal, que o polariza ainda mais.”
Isolado e sob reclusão, Geert Wilders oleou o seu PVV de forma muito particular. É literalmente um partido de um homem só: oficialmente uma associação, não tem quaisquer outro membros a não ser o próprio Wilders. Não há estatutos, nem congressos, nem obrigação de divulgar financiadores. A campanha política é feita sobretudo através das mensagens que publica no Twitter.
Dentro do PVV, Wilders desenvolveu uma cultura fechada e que gira em torno da sua figura — mesmo tendo o partido 37 deputados neste momento. A ordem é para não falar com jornalistas (“Se alguém me vê a falar consigo ou a apertar-lhe a mão, o meu nome vai ser falado dentro do partido”, comentou um dos membros com um jornalista do Nos), mesmo que alguns acabem por o fazer sem serem identificados.
O retrato que traçam é que, mesmo já estando no governo, o PVV continua a ser completamente guiado por Wilders. “As reuniões do grupo parlamentar seguem um padrão”, pode ler-se numa investigação do jornal De Volkskrant. “Se Wilders tiver dúvidas sobre a estratégia de um membro do partido, por vezes surgem debates nas reuniões de terça-feira. Muitas vezes são iniciadas por pessoas do círculo próximo de Wilders, o que as faz parecerem ‘encenadas’, segundo um membro do PVV que saiu recentemente do Parlamento.” Há fontes do partido que falam numa “cultura de medo” e num ambiente “sectário”.
O antigo deputado Louis Bontes foi um dos poucos membros do PVV que falou publicamente sobre o líder: “Ele dá-te a sensação de que és um dos seus confidentes. Mas depois deixa-te cair violentamente”, afirmou à revista De Groene Amsterdammer. “De repente, deixaste de ser bem visto. Ele quer mostrar que, no fundo, todos dependem dele.” Nenhuma figura que possa ameaçar Wilders tem espaço para se afirmar dentro do PVV.
Asilo e imigração, prisões, Gaza e Ucrânia. As crises e tensões entre Wilders e o atual governo (que inclui o seu partido)Eis que, chegados a 2023, o partido de um homem só vence as eleições legislativas. Num restaurante marcado apenas dias antes, Geert Wilders celebra perante os apoiantes ao som de “Eye of the Tiger”. “Os eleitores esta noite falaram e disseram que estão fartos.”
Abre-se o período de negociações para formar governo. E Wilders mantém a nova postura de aparente moderação que apresentou na campanha: “Compreendo muito bem que os partidos não querem estar num governo com um partido que quer medidas inconstitucionais”, declara. “Não vamos falar sobre mesquitas, Alcorões ou escolas islâmicas.”
Também a postura eurocética do partido é moldada. Se em tempos Wilders tinha prometido convocar um referendo como o do Brexit caso viesse a ser primeiro-ministro, agora defendia que a UE deveria ser reformada “a partir de dentro”.

▲ Geert Wilders com os líderes dos restantes partidos que sustentam o atual governo
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É assim que, ao fim de seis meses de negociação, o PVV chega a acordo com o VVD, com o novo partido NSC (fundado por um dissidente dos democratas-cristãos) e com o BBB (partido pró-agricultores) para formar um novo governo, cujo programa comum que apresentam tem o nome “Esperança, coragem e orgulho”. Mas Wilders não faz parte dele: “Só posso tornar-me primeiro-ministro se TODOS os partidos na coligação o apoiarem. Não foi o caso”, escreve no X. “O amor pelo meu país e pelos eleitores é mais importante do que a minha posição.”
Ik kan alleen premier worden als ALLE partijen in de coalitie dat steunen. Dat was niet zo.
Ik wil graag een rechts kabinet. Minder asiel en immigratie. Nederlanders op 1.
De liefde voor mijn land en kiezer is groot en belangrijker dan mijn eigen positie.
Ik hou van NL ❤️
— Geert Wilders (@geertwilderspvv) March 13, 2024
Wilders fica assim numa posição em que mantém um pé dentro e outro fora do poder. Inicialmente, essa ostracização joga a seu favor, com o PVV a subir ainda mais nas sondagens. Mas a experiência de governação alteraria esse cenário, à medida que Wilders foi mantendo um braço de ferro com o primeiro-ministro — o funcionário público independente Dick Schoof — e com vários ministros do governo.
De fora, no Parlamento, Wilders apelida o primeiro-ministro de “fraco” logo no primeiro debate após a formação de governo. Este riposta numa entrevista dizendo que é ele “o chefe”. Wilders responde no X: “Ele não é, de todo, o chefe.”
A tensão continua nos meses seguintes. A imigração está quase sempre no centro da polémica: em setembro de 2024, Wilders propõe que as alterações à lei de asilo sejam aprovadas com um decreto de emergência, em vez de serem aprovadas no Parlamento — e enfrenta a oposição de membros do Conselho do Ministro, que recusam fazê-lo. A ministra que detém a pasta (Marjolein Faber, do PVV) anuncia que vai pedir a Bruxelas para os Países Baixos negociarem uma saída dos tratados em matérias de imigração — algo que a Comissão esclarece que só seria possível se os próprios tratados fossem sujeitos a emendas. O assunto fica em banho-maria.
Em novembro, estala nova crise, desta vez relacionada com os motins que tiveram lugar em Amesterdão, na sequência de um jogo do Maccabi Tel Aviv na cidade. Publicamente, Wilders afirma que o país assistiu a “muçulmanos a caçarem judeus” e “marroquinos que querem destruir judeus”. A secretária de Estado das Finanças Nora Achanbar, de origem marroquina, demite-se, em protesto com as declarações que diz terem sido proferidas por alguns dos seus colegas numa reunião do Conselho de Ministros. De acordo com os media, terão sido usadas expressões como “comedores de halal” e “marroquinos de m****”.
O final do ano tem ainda espaço para mais uma crise, desta vez entre o próprio Wilders e a ministra da Justiça, Ingrid Coenradie (do VVD). A ministra defende que as prisões estão sobrelotadas e propõe que alguns reclusos sejam libertados duas semanas antes de as suas penas terminarem; Wilders contesta-a e, segundo o jornal De Telegraaf, os dois terão tido uma acalorada discussão em privado — mas que se ouviu nos corredores.
Em fevereiro de 2025, o líder do PVV estica ainda mais a corda. Volta à carga com a lei de asilo e ameaça deitar abaixo o governo se as propostas do seu partido não forem aplicadas. Ao mesmo tempo, o seu PVV está debaixo de fogo no Parlamento, acusado pela oposição de ter quebrado as promessas eleitorais sobre habitação. Em causa está o aumento de rendas em 5% que entrou em vigor no início do ano, ajustado ao aumento dos salários, um dos maiores dos últimos 30 anos. O PVV tinha prometido que, consigo no poder, as rendas baixariam em 20%.
A política externa também se torna campo de batalha para o governo e Geert Wilders. Já neste mês de maio, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Caspar Veldkamp (NSC) escreveu uma carta à líder da diplomacia europeia, Kaja Kallas, onde pede que a UE reveja o seu acordo comercial com Israel em retaliação pela guerra em Gaza. Wilders, conhecido apoiante de Israel, insurge-se publicamente: “Os ministros de todos os partidos foram previamente informados disto?”, questiona no X. Veldkamp responde-lhe no mesmo canal: “Não vou entrar em detalhes sobre o processo de decisão e coordenação dentro de um Conselho de Ministros. O que importa é que a situação na Faixa de Gaza é verdadeiramente catastrófica e só está a piorar.” Segundo o canal Nos, numa reunião informal com ministros da UE, o ministro garante-lhes que não está a tomar esta posição “sozinho”.

▲ Geert Wilders e o primeiro-ministro Dick Schoof, com quem tem tido momentos de tensão
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A guerra na Ucrânia é outro ponto de tensão. Antigo apoiante de Vladimir Putin, Wilders está agora numa posição ambígua, ora defendendo que a Rússia é “a agressora”, ora recusando apoiar mais ajuda a Kiev. Quando Volodymyr Zelensky e Donald Trump protagonizaram a acalorada reunião na Casa Branca transmitida na televisão, Wilders não se compromete: escreve que “esta não é a maneira de acabar com uma guerra, meus senhores”, mas também critica “o histérico sentimento anti-Trump de alguns”. O governo, apesar das críticas de Wilders, mantém-se firme no envio de armamento e ajuda financeira à Ucrânia.
As críticas e tensões internas não parecem estar a beneficiar Geert Wilders, nem os restantes partidos do governo. O primeiro sinal veio nas eleições europeias de 2024, em que o vencedor foi a coligação entre socialistas e verdes, liderada por Frans Timmermans. Depois seguiram-se as sondagens. “Durante anos, Wilders tinha números de aprovação dos seus eleitores à volta de 100%. Mas, desde outubro [de 2024], temos visto a confiança descer. Primeiro para 90%, agora para 70%. Não me lembro de alguma vez ter visto Wilders com estes números”, declarou à televisão RTL o especialista em sondagens Gijs Rademaker.
Já este ano, em fevereiro, um novo estudo indicava que, em caso de novas eleições, o PVV perderia três deputados. Em março, só 55% dos inquiridos se diziam satisfeitos com o governo — uma descida face aos 83% de setembro do ano anterior. Em abril, 62% dos eleitores de Wilders diziam achar que o líder do PVV está a perder o controlo do partido. E, pela primeira vez desde a formação do governo, uma sondagem nesse mesmo mês coloca a aliança de socialistas e verdes em primeiro lugar nas intenções de voto.
Perante a descida, Geert Wilders toma uma posição radical. Esta segunda-feira, o líder do PVV fez uma coisa praticamente inédita: marcou uma conferência de imprensa. Em pessoa, apresentou aos jornalistas um plano de dez pontos para reduzir a imigração. Declarou que, se o governo não aprovar estas medidas, o PVV sairá do executivo. “Tirámos as luvas”, declarou. Em concreto, quer medidas para interromper a concessão de pedidos de asilo, a expulsão do país de pessoas com dupla nacionalidade que tenham cometido crimes e a deportação de todos os sírios (por considerar que o país já está em paz).
A versão “otimista” é de que “o sistema neerlandês domesticou Wilders”. A “pessimista” é de que o sistema do país “normalizou Wilders e é agora dominado pelas suas ideias”.
Simon Kuper, jornalista do Financial Times
Da parte dos membros do governo, não surgiram grandes reações. Ninguém sabe ao certo se Wilders irá avante e deitar o governo abaixo, mas a verdade é que não é a primeira vez que faz a ameaça e, até agora, recuou sempre. No De Correspondent, o jornalista Simon van Teutem faz a análise de que o objetivo de Wilders é o de voltar a colocar o tema da imigração na agenda e de se afastar das ações do governo, passando a ideia de que está “comprometido com o desejo dos seus apoiantes” e está a ser “travado pelos parceiros de coligação”.
Uma vez mais desde que o seu partido chegou ao poder, Geert Wilders consegue manter influência dentro do Conselho de Ministros — a ministra da Imigração é nada mais nada menos do que uma fiel membro do PVV —, ao mesmo tempo que se distancia do governo quando lhe é conveniente. Que impacto tal terá quando os Países Baixos voltarem a ir a votos, ninguém sabe. No fundo, ainda não há uma perceção clara do impacto que a chegada ao poder teve no próprio PVV e no homem que, sozinho, criou e levou o partido à vitória.
Simon Kuper, jornalista do Financial Times, entrevistou recentemente Wilders no seu gabinete no Parlamento, onde se mantêm um retrato de Churchill, uma bandeira de Israel e um autocolante onde se lê em árabe que “O Alcorão é um veneno é Maomé um mentiroso”. Concluiu que há duas formas de ver a posição do líder do PVV: a versão “otimista” é de que “o sistema neerlandês domesticou Wilders”. A “pessimista” é de que o sistema do país “normalizou Wilders e é agora dominado pelas suas ideias”. O tempo o dirá.
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