A importância da brincadeira

Como vimos no último texto, a doutrina divide-se na resposta a esta pergunta. No livro Liberdade para aprender, Peter Gray defende que as crianças devem ser responsáveis pela sua própria educação – uma proposta arrojada, mas pouco convincente e que deixa o leitor imediatamente de alerta com a seguinte afirmação:
“A ideia de que é preciso ir à escola para aprender seja o que for ou para se tornar um pensador crítico é manifestamente ridícula para qualquer miúdo que saiba aceder à internet.”
Sabemos hoje que a ideia de que basta aceder à internet para nos tornarmos “pensadores críticos” ou obtermos conhecimento é absurda por várias razões. Uma dessas razões é biológica, mas, estranhamente, Gray não a equaciona no seu texto: na verdade, o cérebro das crianças está em desenvolvimento contínuo e o córtex pré-frontal, responsável pelo pensamento racional, a assunção de responsabilidades, a tomada de decisão ou a gratificação diferida, só termina o seu desenvolvimento depois de nos tornarmos jovens adultos, com mais de 20 anos.
As crianças precisam de orientação e os valores que a escola deveria promover não são difíceis de identificar: fazem parte da tradição ocidental há mais de dois mil anos e podem ser encontrados na obra de Aristóteles.
Em Portugal, temos já alguns projetos que assentam na desvalorização do professor e na defesa de escolas digitais, onde os alunos aprenderiam assistindo a vídeos on-line, de preferência em inglês – pois, como sabemos, tudo é melhor em língua inglesa. Na verdade, esse fascínio pelo digital e pela Internet faz-nos esquecer a mais importante das lições: se a escola tradicional sobreviveu todos estes séculos e se desenvolveu, de forma muito semelhante, em todas as civilizações que prosperaram, isso significa que, como recordou Luís Aguiar-Conraria numa conferência recentemente, ela passou no teste do tempo.
As crianças (e os jovens) precisam de um professor, de uma figura de autoridade e conhecimento e das regras e disciplina necessárias para desenvolverem os valores que nos permitem viver em sociedades mais pacíficas. Mas Peter Gray tem razão numa coisa: também precisam de brincar.
2 Para que serve a brincadeira?Se a parte mais racional do cérebro, digamos assim, amadurece mais tarde, o que os mamíferos fazem nos primeiros anos de vida é desenvolver a parte emocional e, com ela, muitas competências sociais. Não há aqui uma hierarquia: precisamos das duas componentes para nos tornarmos adultos saudáveis e socialmente integrados, mas há diferentes momentos para o desenvolvimento de cada uma.
O argumento evolutivo que Peter Gray apresenta é muito convincente: para aumentarmos as nossas probabilidades de sobrevivência, temos de ser capazes de cooperar eficazmente com os nossos semelhantes e para que isso aconteça precisamos de regulação emocional e regras de sociabilidade. A brincadeira é a forma que a natureza encontrou para nos ensinar isso.
Tudo funciona em termos biológicos: a brincadeira gera prazer (leva o nosso cérebro a produzir químicos de bem-estar) e, por isso, queremos brincar – mas para que as outras crianças queiram brincar connosco precisamos de aprender certas competências e são essas competências que se revelam fundamentais quando somos adultos.
Por um lado, a brincadeira permite-nos adquirir a capacidade de regulação emocional: quando brincam, as crianças aprendem a controlar o corpo e o medo. Já repararam como, nas brincadeiras tradicionais (como as escondidas e a apanhada), as crianças preferem ser as presas? É nessa posição que sentimos mais adrenalina e prazer e, por isso, preferimos fugir ou esconder-nos: a natureza ensina-nos dessa forma a sentir medo sem sermos tomados por ele – aprendemos a regulá-lo e a viver com ele.
O que acontece quando as crianças brincam pouco e por isso não aprendem esta regulação emocional? Tornam-se jovens temerosos e ansiosos, que receiam todas as dificuldades. Não aprenderam a correr riscos, sentir medo e lidar com ele. O mesmo vale para as histórias infantis, que têm sido sistematicamente higienizadas: as histórias tradicionais ensinam as crianças a lidar emocionalmente com o mal, mas quando protegemos as crianças da morte e do sofrimento, elas deixam de ter oportunidade para aprender a lidar emocionalmente com esses acontecimentos. E quando se confrontam realmente com a morte e o sofrimento, mesmo que pouco relevante, não reagem de forma adequada. (O histerismo woke nas universidades norte-americanas faz todo o sentido se considerarmos estes aspetos.)
Por outro lado, a brincadeira permite viver socialmente melhor porque aprendemos a ceder e a não impor a nossa vontade aos outros. Isto acontece porque, como queremos brincar com as outras crianças, aprendemos que não podemos ter sempre razão, nem impor sempre a nossa vontade; aprendemos a ceder e a fazer compromissos. Podemos amuar algumas vezes, mas – se os adultos não interferirem – acabamos por ceder, porque queremos continuar a brincar. Nas palavras de Gray:
“Nos jogos em grupo, todos os jogadores sabem que qualquer um deles desistirá se se sentir infeliz e, se desistirem demasiados, o jogo termina. Para que o jogo continue, os jogadores têm de satisfazer não só os seus próprios desejos, mas também os dos outros jogadores. O forte desejo que as crianças têm de brincar umas com as outras é, por isso, uma forma poderosa de aprenderem a satisfazer os desejos dos outros e a negociar as diferenças.”
Isto significa que aprendemos a reconhecer o outro como legítimo e a controlar os nossos impulsos e as nossas emoções mais violentas: se queremos continuar a brincar, temos de moderar a raiva que sentimos – ou ninguém quererá brincar connosco. Mas se as crianças não puderem desenvolver estas competências – se os adultos interferirem continuamente fazendo com que a vontade das crianças prevaleça –, elas tenderão a tornar-se jovens e adultos mais violentos porque menos capazes de controlar as suas emoções.
3 Que futuro queremos para as crianças?É este o grande contributo do livro de Peter Gray – e também do trabalho que, entre nós, Carlos Neto tem desenvolvido. Os dois autores permitem-nos compreender melhor não só a atual epidemia de ansiedade e doenças mentais dos jovens, mas também por que razão eles têm hoje comportamentos mais violentos.
A falta de brincadeira – que resulta de infâncias superprotegidas, famílias mais pequenas, desestruturação das comunidades e consequente sentimento de insegurança que acabou com a brincadeira na rua (não são só perceções, como é óbvio), horários escolares mais longos e, claro, a maldição dos telemóveis-espertos – juntamente com uma visão higienizada da infância fazem com que as crianças se tornem jovens inseguros, que ampliam os seus medos de forma irrazoável e são incapazes de lidar com as suas emoções. E como são menos capazes de regulação emocional, respondem com ataques de pânico (mais evidente nas raparigas) ou com mais violência (no caso dos rapazes).
Estas lições constituem bons elementos para promovermos uma discussão séria sobre a escola e a sua função. Gastar recursos públicos para discutir uma hora semanal de educação para cidadania é uma perda de tempo quando o que realmente importa é reformular a escola no sentido de permitir mais brincadeira até aos 12 anos e ser mais cientificamente exigente a partir daí. Isto pode significar, como se faz em alguns países, estabelecer o ensino primário por 6 anos (até aproximadamente aos 12), com um horário escolar que garanta tempo de brincadeira livre e não rigorosamente supervisionada por adultos; e ir aumentando o horário escolar a partir dos 12 anos, com um foco grande nos valores e nas competências científicas básicas.
Este não é só um problema português. A crise da escola é um problema ocidental, mas, se formos mais exigentes pelas nossas crianças, ainda vamos a tempo de dar condições para que elas se tornem adultos competentes.
O mês de agosto servirá para carregar baterias, regresso no início de setembro. Votos de umas boas férias!
Novo vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=giyxfOeioNg
observador