Made in Portugal: de Famalicão para o mundo da moda de luxo

Numa grande mesa branca estão dispostos mostruários de tecidos e exemplos de bordados, fechos, lavagens e acabamentos. Ao fundo, uma estante armazena outras amostras — centenas — enquanto mais algumas dezenas estão penduradas num charriot, nas laterais. Do lado oposto estão peças de roupas prontas: tops, calças, vestidos, casacos. Um fecho eclair sem fita gera curiosidade: “Como é fixado?”, quer saber Lulu Shabell, consultora para marcas de luxo e representante do programa CANEX, que traz designers africanos para o Portugal Fashion. A curiosidade pelos mais de 30 mil tipos e qualidades de tecidos e pelas inovações do setor apresentadas nesta sala é grande.
O Observador acompanhou a visita de criadores de moda de diferentes países de África e da Arábia Saudita a três fábricas têxteis em Famalicão, empresas que são especializadas em produzir peças para o mercado de luxo internacional. É o caso da AAC, que foi fundada em 1984 pelos pais de Paulo Pereira. Hoje, o empresário é um dos que gere a empresa, e já tem filhos a trabalhar no negócio. “Começámos por um segmento que era o que na altura existia e prevalecia em Portugal, aquilo que hoje se chama o fast fashion, e fomos evoluindo, daí passámos para o segmento médio e nos últimos 10 anos temos estado mais no segmento luxo”, explica. Aqui, a produção é 100% para fora: a fábrica exporta 150 mil unidades por mês para clientes nos EUA, Itália, França e Japão. Os donos não podem revelar com que marcas trabalham, por causa de restritos contratos de confidencialidade, mas há artigos de etiquetas de grupos como a Kering (dona da Gucci, Balenciaga, Yves Saint Laurent ou Bottega Veneta, por exemplo) ou a LVMH (grupo da Louis Vuitton, Dior, ou Loewe).




▲ A AAC tem mais de 30 mil tipos de tecidos no mostruário e uma pequena confeção para produzir peças mais delicadas
A AAC produz todos os tipos de artigos de vestuário, desde swimwear até camisolas ou bonés, um diferencial que Paulo diz ser valorizado pelas marcas internacionais, que procuram ter uma coleção uniforme. Outro motivo para os clientes de alto padrão procurarem Portugal tem a ver com a localização — as peças são mais facilmente e rapidamente exportadas para outros destinos europeus. A relação qualidade preço também parece ser um grande diferencial, já que a mão de obra é mais barata do que em outros países da Europa, mas as condições de trabalho e a qualidade da produção é superior a de países como a China. “Portugal tem claramente uma posição muito forte naquilo que são as malhas circulares, o Jersey, como se chama. Existe toda uma infraestrutura capaz de desenvolver de raiz e com qualidade. E nesse aspeto, acho que ultrapassámos muitos dos nossos países concorrentes, somos mais dinâmicos, mais rápidos, mais competitivos, mais qualitativos. Mas há mais, podemos também fazer tecidos, podemos fazer banho, podemos fazer uma série de coisas. Há um saber fazer em Portugal que é muito interessante, apesar de ser uma escala muito pequena.”
O trabalho começa na escolha dos tecidos — que podem ser importados do mundo todo ou reproduzidos em parceiros da indústria local, nos quais ainda é possível realizar diversas técnicas de lavagem, impressão ou bordados. Passada a etapa dos protótipos, em que são criados os modelos e aprovados os materiais, é iniciado o processo de produção. “Qual é o pedido mínimo?”, quer saber Khalid Almasoud, diretor criativo da marca saudita Awaken. Paulo Pereira explica que a AAC só aceita produzir a partir de 250 unidades por estilo — a não ser que seja uma edição limitada de uma marca muito relevante, que justifique reduzir a quantidade de peças.
A confeção é parcialmente feita na sede da empresa — que vai ganhar um novo prédio, do outro lado da rua, com 3 mil metros quadrados. A expansão não tem a ver com o crescimento do negócio, mas sim com aumentar o espaço de trabalho e centralizar a produção e o armazenamento. Atualmente no pequeno atelier trabalham cerca de 30 mulheres, algumas já perto da idade da reforma. Ana Paula Silva Santos trabalha há 40 anos como costureira e está há dois na AAC. “Preferi vir para a confeção porque gostava de aprender. E então os meus pais arranjaram-me trabalho. Gosto mesmo da minha profissão”, diz ao Observador, diante da máquina de costura. “Tenho uma máquina em casa”, diz ainda, confessando que às vezes busca inspiração nos artigos que cria na fábrica. “Vejo peças bonitas e tento fazer igual. Gosto de ver desfiles e peças bonitas nas montras”, diz.

▲ Paulo Pereira, da AAC, recebe os designers estrangeiros na fábrica em Famalicão
IGOR MARTINS / OBSERVADOR
Pelas mãos de Paula e outras mulheres (nesta fábrica não vimos homens à frente das máquinas de costura), são produzidas peças que demandam um cuidado especial, por serem feitas com materiais tão delicados quanto as sedas ou as organzas. O espaço tem ainda uma máquina de corte de tecido localizado, que permite por exemplo recortar peças com padrões como o xadrez ou às listas e garantir que sejam colocadas na direção correta para que fiquem alinhadas ao costurar. Há ainda tecnologia para produzir uma impressão super detalhada, que reproduz a pintura à mão. Outras peças são confecionadas em fábricas locais, cerca de 25 parceiros que ficam no máximo a 30 quilómetros de distância, para facilitar as visitas frequentes dos técnicos que verificam se estão a ser produzidas conforme as instruções.
"Esta indústria já teve 800 mil pessoas há 20 anos, hoje tem 100 mil. Voltar a crescer? Talvez não na mesma escala, mas pelo menos em valor acrescentado. Ou seja, fazer produto muito barato e competir com a Ásia não traz valor acrescentado. Fazer luxo sim, e é isso que este país precisa."
Paulo Pereira, sócio da AAC Textiles
Paulo Pereira destaca que gostava de ver a indústria têxtil de Portugal a competir com dois grandes produtores de moda de luxo: França e Itália. “Esta indústria já teve 800 mil pessoas há 20 anos, hoje tem 100 mil. Voltar a crescer? Talvez não na mesma escala, mas pelo menos em valor acrescentado. Ou seja, fazer produto muito barato e competir com a Ásia não traz valor acrescentado. Fazer luxo sim, e é isso que este país precisa“, defende o empresário.
A força da indústria têxtil em PortugalPortugal é o 27.º país no ranking mundial de exportações de produtos têxteis e vestuário, de acordo com um estudo apresentado em outubro de 2024 pelo Gabinete de Estratégia e Estudos do Ministério da Economia. Mais de 99% das 12 mil empresas do setor são pequenas e médias e empregam ao todo cerca de 128 mil trabalhadores. Em 2022 a indústria têxtil e de vestuário representava 1,3% do PIB do País e gerava 2,7 mil milhões de euros em valor acrescentado bruto.
Dentro desta indústria, o grupo TMG é um dos mais importantes de Portugal. Com 1400 trabalhadores, em que mais da metade está dedicada à área automóvel, a fábrica é responsável por têxteis e revestimentos para o interior de veículos de mais de 20 marcas — como BMW, Mercedes e Porsche. Entretanto, a fiação fundada em 1937 por António Manuel Gonçalves também tem um departamento de moda especializado no desenvolvimento de tecidos para a indústria fashion, com matérias primas como algodão, bamboo, ganga reciclada, linho, cânhamo ou poliéster reciclado. A impressionante tecidoteca gera logo interesse entre os designers estrangeiros que visitam a fábrica — com artigos dos últimos 40 anos e mais de 5 mil amostras, que contam a história da produção têxtil em Portugal.




▲ A urdideira e os teares circulares e retos da TMG, para a produção de malhas
Enquanto caminha pela fábrica, o grupo de designers africanos e árabes que o Observador acompanha mostra-se encantado com a dança de fios das urdideiras. Ao passar por entre os teares circulares, que tecem os fios para formar um único tecido, abaixam-se para ver o processo em andamento. Numa outra sala, o barulho ensurdecedor de dezenas de teares retos impressiona. Depois da tecelagem, os rolos de tecidos vão para a finalização, onde passam por um processo de lavagem e de termofixação. Molhados, os tecidos ficam mais maleáveis e são esticados para então passar por uma máquina aquecida a gás que chega a uma temperatura de 210 graus celsius. O resultado é um tecido mais estável, que não encolhe ou muda a cor se for lavado, por exemplo. No andar de cima, a TMG tem ainda uma confeção onde produz peças para marcas de luxo internacionais.
Ao entrar na 5D fica logo claro que o foco é o denim. A fábrica produz calças, vestidos, jumpsuits e casacos de ganga. “Temos equipas de design, mas os nossos clientes já têm equipas criativas. O nosso trabalho é como concretizar ideias, como tornar possível a produção em série”, explica Andreia Vigário, uma das fundadoras da empresa. No showroom estão peças Kenzo, A.P.C. ou JW Anderson — a marca homónima do novo diretor criativo da Dior.

▲ Andreia Vigário é uma das fundadoras da 5D, empresa que está há 10 anos no mercado, focada em peças em ganga
IGOR MARTINS / OBSERVADOR
Andreia e o sócio, Carlos Pereira, começaram o negócio há cerca de 10 anos, depois de trabalharem na Salsa Jeans. “Contratámos uma costureira e um modelista e começámos a desenvolver amostras e a fazer prospeção de mercado por marcas europeias, de segmento médio-alto, através de contactos de LinkedIn, e algumas portas abriram-se em Paris.” A empresa tem hoje uma estrutura com três armazéns e 140 funcionários. “Hoje em dia não temos a pretensão de crescer a estrutura. O que nós queremos é manter o nível de clientes que temos, continuar a oferecer um bom serviço. Nesta área o que é muito difícil é que os clientes permaneçam e que nós tenhamos relações cada vez mais próximas“, diz Andreia, que tem marcas que trabalham com a empresa desde o início, há quase uma década.
Os clientes procuram a 5D com desenhos ou fotografias, e é na fábrica que se desenvolvem os protótipos para, depois, proceder com a produção das coleções. Andreia destaca que as peças em ganga podem parecer todas iguais, mas que a qualidade está nos detalhes: a costura, a elasticidade do tecido ou a abertura dos bolsos, por exemplo, fazem a diferença. Aqui, a produção mínima é de 200 unidades por estilo e 70% da confeção é feita na fábrica. A 5D importa a ganga de países como o Japão, a Espanha e a Itália, e depois subcontrata o trabalho de lavagem — as cores do tecido são atingidas com diferentes técnicas. A fábrica trabalha com cinco lavandarias, a depender do objetivo final. Uma das preocupações também é com a sustentabilidade, e por isso preferem técnicas a laser, que evitam o uso de água e químicos, em que o desgaste acontece por radiação; ou o uso de ozono, que consegue o mesmo visual das lavagens tradicionais, mas sem água.
Aliás, a sustentabilidade é um chamariz para as marcas internacionais, que também procuram a indústria portuguesa pela localização mais próxima de mercados como a França e os Estados Unidos, explica a fundadora da 5D. Entretanto, o preço de custo de cada unidade acaba sendo maior do que outros produtores internacionais — o que é um dos motivos para a fábrica só trabalhar com marcas de luxo internacionais. “A maior parte das marcas portuguesas não consegue trabalhar com esses custos objetivos do preço de produção em Portugal”, explica Andreia. “Diria que 50% das nossas marcas são de França e alguns países europeus. Hoje em dia já trabalhamos muito para os Estados Unidos e um pouco para a Austrália”.
"Acreditamos mesmo que somos mais fortes se a nossa indústria em Portugal for mais forte, for mais divulgada, se estiver mais unida."
Andreia Vigário, sócia fundadora da 5D
Para a fundadora da 5D, uma das maiores dificuldades da indústria têxtil portuguesa está mesmo nos preços. “Toda a gente quer dar as melhores condições possíveis aos seus colaboradores e funcionários. Nós temos muitos custos com o Estado, estamos sempre a tentar investir em questões de sustentabilidade, de inovação, de investigação e desenvolvimento. Temos as taxas, o aumento da energia, o aumento dos transportes desde a guerra e desde a Covid, tem sido um desafio efetivo”, diz Andreia, que acredita que a diversificação e as parcerias podem ser benéficas. “Tenho sentido que os nossos clientes querem concentrar os seus fornecedores. Ou seja, se vêm a Portugal produzir T-shirts porque nós somos muito bons nessas malhas circulares, e se perto houver com igual qualidade uma empresa como a 5D ou outra na mesma área a produzir gangas, e outra a produzir casacos ou peças desportivas ou o que quer que seja, as marcas têm interesse em concentrar porque a comunicação é mais fácil, os transportes podem ser agrupados, há aqui uma questão de sustentabilidade, as viagens não são tão distantes“, explica. “Acreditamos mesmo que somos mais fortes se a nossa indústria em Portugal for mais forte, for mais divulgada, se estiver mais unida.”
observador