"Na arte contemporânea ninguém pensa em Portugal"

Daniel Baumann é um dos mais prestigiados curadores independentes da chamada Europa Central. É historiador de arte e escritor. Tem 58 anos, é suíço e acaba de aceitar trabalhar como curador principal na Casa de São Roque, no Porto, um projeto independente que tem também por missão dar a conhecer a Coleção Peter Meeker. Acredita que chegou o momento do mundo descobrir a arte contemporânea portuguesa e que sabe como fazê-lo. A receita, diz, pode levar algum tempo, mas é simples: pôr as pessoas certas a falar dos artistas portugueses certos.
Com uma carreira fulgurante no mundo da arte contemporânea, Baumann esteve associado a projetos tão importantes como a Exhibition #1, ou a ‘SNOWCA$H’, foi galardoado com o Prémio de Melhor Curador em 2006, tornou-se Special Advisor da Frieze, em Londres, em 2009. Em Berna, trabalhou na equipa curatorial da Fundação Adolf Wölfli no Kunstmuseum, entre 1996 e 2013. Nesse ano estreou-se como curador da Carnegie International, em Pittsburgh. De 2015 até março deste ano dirigiu a Kunsthalle de Zurique. Em conversa com o Observador, Daniel Baumann explica como Portugal pode passar a fazer parte do mapa no que respeita ao mundo da arte. E adverte que este é o momento ideal, aquele em que a periferia se torna apetecível a curadores e diretores de museus, gente capaz de operar a mudança e que cada vez está mais saturada do profissionalismo europeu mascarado de wokismo.
Por que razão é a arte contemporânea portuguesa uma desconhecida na Europa e na Europa Central especialmente? Eu mesmo desconhecia a arte contemporânea portuguesa até há poucos anos. Trabalho como curador a nível internacional e nunca tinha olhado para Portugal enquanto país de arte contemporânea, nem conhecia os vossos artistas. O que não é comum. Quando se faz pesquisa, quando se pensa em exposições olha-se para todo o tipo de direções, procura-se em todo o lado. No entanto, só me apercebi depois de contactar com a arte portuguesa, que nunca tinha olhado para Portugal ou procurado um artista português. Dei-me conta disto quando há três anos fui convidado por uma organização portuguesa, a PARTE Portugal Art Encounters., para visitar o país, eu e um conjunto de curadores internacionais.
Foi interessante? Foi uma viagem muito interessante. Visitámos o norte do país e fomos a muitos sítios diferentes, museus, galerias, estivemos com colecionadores e por aí fora. Foi aí que me apercebi do meu desconhecimento em relação à arte portuguesa. Além da Ana Jotta e talvez do Cabrita Reis e do Julião Sarmento, não conhecia mais ninguém, e há tantos artistas portugueses. Ficavam fora do meu alcance a Lourdes Castro, a Helena Almeida e o Álvaro Lapa, por exemplo. Nessa altura também visitei a Casa de São Roque e descobri o trabalho de Augusto Alves da Silva, de quem nunca tinha ouvido falar, de Jorge Molder, de Paulo Nozolino, de Rui Chafes. Talvez já tivesse ouvido falar do Chafes e do Nozolino, mas não sabia o suficiente. E, de facto, esta é a situação em termos gerais na Europa central.

▲ "Uma forma de o fazer [dar a conhecer a arte portuguesa] é o que fazemos na Casa de São Roque e que se traduz em convidar gente para vir, curadores, diretores de museus, agentes culturais"
IGOR MARTINS / OBSERVADOR
Por que razão será assim? Acha que se o Governo português apoiasse mais a arte contemporânea, nomeadamente na sua participação em feiras de arte internacionais, a situação seria melhor? Não me parece. Creio que o problema é outro. Em primeiro lugar, Portugal é conhecido na Europa pela sua mão de obra, ou força de trabalho, é conhecido pelos emigrantes que vieram para a Suíça, para França, para a Alemanha… Essa é a imagem que temos do país. Ou então conhecemo-lo pelo turismo, sabemos que existe o Algarve, conhecemos as praias e o bom tempo. Portanto, Portugal significa de alguma forma pobreza ou turismo. Além disso, talvez Ronaldo. E é mais ou menos isto.
E a arquitetura, não? Ou Serralves? Sim, a arquitetura portuguesa começa agora a ser um tema mas apenas junto de uma pequena comunidade que não é propriamente a comunidade da arte. No que respeita à arte contemporânea, ninguém pensa em Portugal. Pode ser por se tratar de um fenómeno recente. Gostava de mudar isso.
Por ter pouco mais de 50 ou 60 anos devido à ditadura do Estado Novo e à chegada tardia da democracia? Sim, é possível. Outra das razões porque é tão desconhecida é por não ter nada que ver com coisas como o impressionismo, o dadaísmo, o surrealismo ou outras coisas do género, como a arte abstrata europeia ou americana. A arte contemporânea portuguesa não é como a literatura portuguesa, a arte contemporânea portuguesa parece ter só 50 anos ou por aí.
É possível mudar este estado de coisas e tornar a arte contemporânea portuguesa conhecida de alguma maneira? Diria que sim. Até porque a arte contemporânea portuguesa é composta por bons artistas, indispensáveis a qualquer ação. O que joga a favor do país e também joga a vosso favor é o facto de cada vez haver mais gente farta dos sítios do costume. Na Europa central todas as cidades se parecem umas com as outras, a arte é igual em todo o lado, a cultura não se consegue diferenciar. Por todo o lado existe esta espécie de mundo artístico ocidentalizado que se torna cansativo. E há efetivamente cada vez mais gente a preferir sítios como Portugal.
"Há um problema de conhecimento, de divulgação e de promoção. As pessoas não conhecem a arte e os artistas portugueses. E têm que vir conhecê-los in loco. O problema está aí e não na qualidade da arte ou dos artistas."
Portugal e a arte contemporânea portuguesa aparecem só porque são diferentes, exóticos e estamos fartos do resto, ou porque valem a pena e significam alguma coisa? Os artistas têm uma voz e algo a dizer? Creio que sim. Quando cheguei a Portugal o primeiro embate foi a linguagem, não percebia a língua, e não me refiro à língua portuguesa, falo da linguagem artística, o discurso não é o mesmo, é diferente. No circuito global da arte isso pode ser um problema, ou porque não se encaixa em lado nenhum ou…
Porque quando não se percebe o que se está a dizer, não se tem vontade de ouvir? Claro, isso mesmo. Nem de ouvir nem de divulgar. No entanto, acho que isso funcionou contra a arte portuguesa durante muitos anos, mas vai passar a jogar a favor nos próximos tempos. Isto porque as outras linguagens se tornaram demasiado chatas, repetitivas, gastas. O interesse em aprender a linguagem visual da arte portuguesa é cada vez maior. Ela pode oferecer algo novo, diferente.
O que é preciso fazer? É preciso um esforço. Um esforço contrário à ideia de promover a arte portuguesa através do apoio do Estado a exposições de artistas nacionais. É preciso levar os curadores a Portugal, a conhecer a arte e os artistas. É o caminho ou processo inverso. Anthony Huberman [um dos mais prestigiados curadores e críticos de arte suíços sediado em Nova Iorque] foi à Casa de São Roque há umas semanas e ficou interessado em alguns artistas portugueses, gostou por exemplo da série Waiters (1986), de Jorge Molder, fartou-se de dizer que se os tivesse conhecido antes já teria feito alguma exposição com eles, ou tê-los-ia incluído em algumas mostras. Há um problema de conhecimento, de divulgação e de promoção. As pessoas não conhecem a arte e os artistas portugueses. E têm que vir conhecê-los in loco. O problema está aí e não na qualidade da arte ou dos artistas.
Mais uma vez, a pergunta: como fazer? Uma forma de o fazer é a que estamos agora a levar a cabo na Casa de São Roque e que se traduz em convidar gente para vir, curadores, diretores de museus, de galerias e agentes culturais, amigos de museus.


▲ Imagens da série "Waiters", de Jorge Molder (1986) — coleção da Fundação Calouste Gulbenkian
E deixá-los escolher os artistas de que mais gostam, aqueles que lhes dizem alguma coisa? Nunca sabemos o que essas pessoas vão realmente fazer ou não, mas pelo menos sabemos que vão olhar para a arte portuguesa e para os artistas contemporâneos. A primeira coisa é fazer com que passe a estar na cabeça das pessoas olhar também para Portugal quando pensarem em organizar, idealizar, definir uma exposição, pensarem em Portugal para descobrir coisas novas. Eu descobri coisas novas, por exemplo o coletivo Oficina Arara, um grupo de artistas que faz cartazes políticos fantásticos. É preciso que venham pessoas descobrir coisas novas e pessoas que venham com olhos diferentes dos vossos, porque talvez eles vejam coisas que vocês não veem. Portugal tem estado demasiado isolado. A verdade é que olhamos para França, olhamos ainda um bocadinho para Espanha, mas já não vemos Portugal.
Para a Espanha antiga ou para a Espanha contemporânea? Não, de facto a Espanha contemporânea não é muito forte. Já teve melhores dias. Portanto, pensamos logo que não há mais nada a oeste, a oeste nada de novo, nem nos lembramos de Portugal. Podemos mudar isso agora. Eu pessoalmente fiquei muito agradavelmente surpreendido pelos trabalhos extraordinários que vi. Vamos trazer gente a Portugal para que os curadores passem a lembrar-se do país e dos seus artistas quando tiverem que montar uma exposição. Que verifiquem sempre o que querem ter de Portugal nas mostras que organizam, que trabalhos, que artistas lhes interessam. Artistas como os que já falei, Nozolino, Chafes, Molder, precisam estar em contextos internacionais, artistas mais novos também. Não precisam estar em contexto português.
Mas há uma arte portuguesa, uma característica nacional? Acho que isso é o que o Governo pensa. Porém, trata-se de um erro grasso, absoluto. Não é de todo interessante fazer da arte portuguesa uma marca. O que é interessante é ter todos estes artistas que saem de um contexto português e têm o seu papel. Não é produtivo ter uma ideia globalizante da arte, uma generalização tipo McDonald’s não é boa para ninguém, muito menos para a cultura portuguesa.
E se tiver que haver um ativo, qual será? O ativo tem que ser português, mas não nacional, um ativo que venha de um contexto particular e interessante, com uma história longa, apesar de só em 1974, depois da ditadura, a arte se tenha constituído como verdadeiramente contemporânea. Parece que muitos de vocês já se demitiram ou desistiram da ideia de que alguma vez haverá um real interesse do exterior pela arte portuguesa. Nos anos 90 do século passado houve essa esperança, talvez. A geração de artistas que agora se tornaram lendas para os mais novos, a geração da Ana Jotta, por exemplo, desistiu, creem que ninguém vai chegar e que ninguém vai olhar com atenção, e já não querem saber disso. Posso entender essa posição. No entanto, acho que este é o momento e que é desta que a arte contemporânea portuguesa vai ser olhada como deve ser. Vejo muita gente a chegar, amigos, conhecidos, outros menos. É preciso mais gente a chegar a Lisboa e ao Porto, gente como Mário Sequeira, cujo espaço é já uma lenda, e é preciso ligar as pontas.
"Para quem vem de fora, ouvir a maioria dos artistas portugueses a falar uns dos outros e a dizer de quem gosta e de quem não gosta, é demasiado chato e apetece dizer que esses vossos problemas não são nada interessantes. Se não gostam daquele curador e odeiam determinado artista, não me interessa nada, é demasiado provinciano"
De que linguagem artística falava há pouco, uma linguagem artística portuguesa que não entendia ao início? É uma linguagem que se relaciona com a figura, com uma certa teatralidade e com um certo humor, mau humor, uma certa má disposição, mas não quero alargar-me em clichés. Mesmo a realizadora Leonor Teles em Balada de um Batráquio nos fala disto. Há uma certa melancolia, direi, que não soou muito bem até agora. Nos últimos 20 anos houve tanto dinheiro a chegar ao mundo da arte que este se transformou numa grande festa, onde esse lado melancólico não era bem-vindo. Agora que estamos na ressaca, as coisas mudam de figura. Agora já vemos qualidades na melancolia.
E qual será o papel dos curadores nesta mudança de situação? Na parte que me toca, quando vejo algum trabalho interessante e começo a falar com outros curadores sobre ele é como se estivesse a dar um passo. O interesse espalha-se, é o que acontece com um rumor. Foi o que aconteceu quando expus a Ana Jotta em Zurique, porque achei que as pessoas deviam conhecer o trabalho dela. Sei que há uma audiência para ela, foi muito bem recebida pelas gerações mais novas, sobretudo no que diz respeito à forma tão particular que ela tem de resistir e de recusar. Estes são sempre temas grandes e especialmente agora. Por alguma razão, a arte portuguesa não teve advogados, não teve um lobby. Ter o apoio governamental não é suficiente. É preciso esse tal lobby, e que venha das bases até ao topo. São os curadores que têm que ver e conhecer o trabalho dos artistas portugueses, o bom trabalho dos bons artistas portugueses, e criar algum mistério à volta deles, uma espécie de rumor, como já disse.
E deve espalhar-se o rumor entre quem? Colecionadores, curadores, diretores de museus, galerias, as revistas já acabaram e eram um meio importante nestas coisas. Um grupo de pessoas que descubra o país e que conte o que viu aos outros. A seguir, criar-se-á uma dinâmica. Para que isto aconteça, parece-me que a Casa de São Roque é uma instituição muito interessante. Não é um espaço alternativo, não é um museu, não é um espaço oficial, é um lugar aberto, bonito, é uma instituição que fica entre o alternativo e o museu, não tem regras fixas a seguir, como acontece com os museus. São precisos também locais assim e talvez haja mais espaços destes em Portugal, há alguns em Lisboa. E podem criar essa dinâmica. Afinal de contas, não é preciso muito, é preciso é que sejam as pessoas certas, como em qualquer jogo, é preciso ter bons jogadores em campo. E é preciso que eles acreditem naquilo que descobriram. Um conjunto de bons curadores, de boas galerias, de boas instituições. E não é só o prestigio que conta, é muito mais do que isso. Têm que ser pessoas que queiram mudar este estado de coisas.


▲ "O interesse espalha-se, é o que acontece com um rumor. Foi o que aconteceu quando expus a Ana Jotta em Zurique, porque achei que as pessoas deviam conhecer o trabalho dela"
Mais nada? Talvez que a mentalidade também mude um bocadinho. Para quem vem de fora, ouvir a maioria dos artistas portugueses a falar uns dos outros e a dizer de quem gosta e de quem não gosta, é demasiado chato e apetece dizer que esses vossos problemas não são nada interessantes. Se não gostam daquele curador e odeiam determinado artista, não me interessa nada, é demasiado provinciano. Estão demasiado centrados neles próprios. E é necessário abrirem-se a outros interesses. Há coisas muito piores na arte do que detestar o vizinho do lado.
Fala de alguma coisa em especial? Vejo muita gente a sofrer a sério. Curadores, diretores de museus que trabalham 14 horas por dia e atravessam ambientes brutais. Este tornou-se um trabalho absolutamente exigente. É inacreditável. As expectativas são intoleráveis.
Que expectativas, sobre a medida do sucesso de cada exposição? O número de visitantes? O tipo de exposição? Falo da expectativa de perfeição, da exigência de não se cometerem erros. Da exclusão daqueles que cometem erros, de serem imediatamente tratados como se fossem más pessoas. Ainda não estive tempo suficiente em Portugal, mas o ambiente é menos stressante a este nível. Espero que se mantenha assim, porque esse lado menos profissional que existe em Portugal é no momento atual uma grande vantagem. Este profissionalismo que estamos a levar ao extremo pode matar-nos.
A que é que chama um erro? Escolher o artista errado? Escolher as palavras erradas para descrever alguma coisa. Se fizer uma exposição em Berlim, por exemplo, virão ter consigo grupos que lhe vão explicar que aquilo que disse ou escreveu pode ser ofensivo por esta e aquela razão. A linguagem passou a estar controlada por gente especializada.
"Aceitei porque achei o trabalho interessante. A questão agora é saber como fazer para que outros percebam quão interessante é a arte portuguesa e como vale a pena investir nela. Coisa que não foi feita nos últimos 30 anos."
Está a falar de cultura woke? Basicamente é assim que lhe chamam. Não tenho absolutamente nada contra minorias e nada contra estes temas, mas tudo isto se tornou uma máquina de medo e de controlo. Escreve-se um texto e até ser aceite por todas as partes e poder ser afixado na exposição demora mais de uma semana e depois quando o texto chega, limpo, ninguém consegue aprender nada com ele, porque já não diz nada. Tudo o que se passa agora é às escondidas, o que se torna público é o resultado limpo das questões que foram levantadas e que podiam fazer-nos aprender com as dúvidas. O debate só se faz atrás da porta. Por que todos têm medo do debate na arena pública. Posso compreender a ideia, mas ela produz novas formas de exclusão. Mesmo que só envolva especialistas, é uma nova forma de paternalismo. Em Portugal, tudo é mais caótico e isso agora é uma qualidade. Essa é a vantagem de estar na periferia. Muitos de nós estamos tão fartos daquilo que acontece nos centro do mundo que preferimos ir para outros sítios mais distantes. Neste momento, na periferia há uma vida mais interessante e mais agradável. Pergunto-me por que é que um país como Portugal gostaria de estar no centro. Acho que deviam estar muito orgulhosos de serem tão raros e tomar isso como um ativo poderoso.
É um sentimento muito humano, todos queremos, de uma forma ou de outra, aquilo que não temos. Isso é verdade. No entanto, há que ter orgulho no que temos e no que somos.
Foi por este conjunto de razões que aceitou trabalhar com a Casa de São Roque, no Porto? Aceitei porque achei o trabalho interessante. A questão agora é saber como fazer para que outros percebam quão interessante é a arte portuguesa e como vale a pena investir nela. Coisa que não foi feita nos últimos 30 anos.
Pelo menos não foi feita da maneira certa. Sim, talvez tenham tentado, mas não foram bem sucedidos. Trabalho em arte há 30 anos e estou muito feliz por poder tentá-lo agora, acho mesmo que vale a pena. Não prometo nem garanto nada, obviamente. Mas que é um momento interessante com uma nova geração a despontar. Só é preciso convencer mais alguns como eu. Pode demorar algum tempo, mais dois, três anos, não sei, até que as pontas se conectem, se liguem… Portugal não é só feito de Golden Visas.
observador