Simone de Oliveira. ‘Não sou comprável de maneira nenhuma. Talvez só por um maço de cigarros’

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Simone de Oliveira. ‘Não sou comprável de maneira nenhuma. Talvez só por um maço de cigarros’

Simone de Oliveira. ‘Não sou comprável de maneira nenhuma. Talvez só por um maço de cigarros’

A vida é uma caixa de surpresas. Nem sempre boas. Simone de Oliveira, 87 anos, recebe-nos na Casa do Artista, onde agora reside, e fala sem mágoa do pior e do melhor que lhe calhou na sorte: dos sucessos como cantora, da vida no teatro, do jornalismo, palco que também pisou, sem se emocionar. Só as paixões lhe fazem vibrar as palavras. Descobri-la é atravessar as palavras do poeta e amigo, Ary dos Santos: «Onde anda aquela mulher muito grande, com uma voz muito grande, que é toda muito grande?» Continua aqui. Com a mesma força.

A violência doméstica é o crime que mais mulheres mata em Portugal. Há problemas que persistem no tempo: a celebração da conduta do ‘bom macho’ lusitano – difundida nas redes sociais por um nicho de jovens que consideram que as raparigas são propriedade sua e, portanto, na economia amorosa, têm de se submeter a tudo, até à pancada – ou o velho ditado que, ‘entre marido e mulher, ninguém meta a colher’. A Simone passou por isso ainda muito jovem, com 19 anos, e abandonou o seu marido numa época em que se exigia às mulheres que, a bem de pátria, família e igreja, não beliscassem a harmonia familiar. Com a sua experiência, que conselho dá às mulheres que estão a passar pelo mesmo?

Vão-se embora, peçam ajuda, chamem a polícia, façam queixa deles porque esses homens devem ir para a prisão.

Fugiu do seu marido três meses depois de casar. Como se escangalha uma relação em tão pouco tempo?

Acho que ele nunca me amou, casou comigo porque era um homem de palavra (risos). Eu, na altura, namorava com um primo meu e ele apostou com uma colega que andava comigo no colégio que era capaz de desfazer o namoro. E assim foi. Numa festa na casa dela, não me pergunte como nem porquê, começamos a namorar. No dia do casamento, estava a subir ao altar e ia pensando: ‘Chego lá a cima e digo que não caso’. Mas acabei por dizer que sim. Já era difícil voltar atrás. Mas nem o apelido dele quis.

Então, não foi paixão?

Não, foi um ataque de estupidez. As mulheres na altura não pensavam numa profissão: era casar, ter filhos, ficar em casa e acabou. Saí do liceu aos 15 anos, comecei a namorar, anel de noivado, tudo à séria e casei. Um disparate.

Ele revelou-se depressa. Foram ciúmes?

Não. O senhor batia-me por razões absolutamente idiotas. Era um sovina. Tinha de poupar em tudo: na conta de eletricidade, da água, etc. Por exemplo: eu gostava de ouvir música, mas desligava o rádio quando ele estava para chegar. Não servia de nada porque ele a primeira coisa que fazia ao entrar em casa era passar a mão pelo rádio. Se estivesse quente , lá me cumprimentava com estaladões. Também não podia lavar a loiça com água quente… Mesquinhices.

Alguma vez pensou que, se ficasse, podia morrer?

Era mais fácil ser eu a matá-lo do que o contrário.

Essa afirmação não será resultado da sua análise a posteriori?

Não, não. Porque, uma vez, o senhor vinha na minha direção para me bater e eu estava no fogão com uma frigideira com azeite a ferver, virei-me para ele com aquela arma mortífera (risos) e ele travou o passo, porque percebeu que eu lhe atirava mesmo com aquilo para cima.

Quando decidiu partir?

No dia em que, depois de ele verificar a conta da mercearia, entendeu que faltava um tostão. Deu-me um estaladão tal que fui ao chão. Disse-lhe que me ia embora e ele fechou a porta. Dirigi-me para a varanda e gritei: “Ou abres a porta ou salto da varanda!”.

Saltava mesmo?

Saltava. O nosso apartamento ficava num primeiro andar, mas ainda era alto. Percebeu que eu cumpria a ameaça e abriu a porta. Nunca mais me esqueço que, nesse dia, tinha uma saia verde com peitilho que a minha mãe tinha feito e uma blusa branca. Escondi 25 tostões numa mão, era todo o dinheiro que tinha. Sabia que com esse dinheiro podia comprar o bilhete da Amadora, que era onde vivíamos, para o Rossio. Os meus pais viviam em Alvalade, mas o dinheiro não dava para mais. Comprei o bilhete e depois não me lembro de mais nada. É um buraco negro. Só me recordo de chegar a casa dos meus pais em Alvalade. Devo ter ido a pé do Rossio até lá. Contei tudo à minha mãe e ela teve um ataque cardíaco. Sofria de aperto mitral.

Com o seu sentido de humor, atrevo-me a dizer que a sua vida mais parece um romance de cordel, tipo ‘Maria! não me mates que eu sou tua mãe’, do Camilo Castelo Branco.

E ainda não viu nada, dê cordel a isso. (risos) Agora, veja o calibre do senhor! A minha mãe no chão e o telefone não parava de tocar. Atendi e era ele a dizer que tinha bilhetes para o cinema no Éden! Só lhe respondi: “Se a minha mãe morrer aqui, mato-te.” A minha sorte é que tive uns pais espetaculares. Claro que depois fiquei muito mal. Psicologicamente fui-me abaixo, estive muito tempo sem querer sair da cama.

Como é que deu a volta?

Gostava de ouvir rádio, como já lhe disse. Havia, na altura, o Centro de Preparação de Artistas da Emissora Nacional. A minha irmã descobriu e disse ao meu pai que ele me devia inscrever para ver se eu saía da cama e me distraía.

O que era o Centro de Preparação de Artistas?

Era uma espécie de escolinha. Passou por lá meio mundo: António Calvário, Artur Garcia, Madalena Iglésias…

Foi aí que descobriu a sua vocação?

Até aí, nunca me ocorrera que iria cantar, fazer teatro ou coisa que o valha. O meu pai, aliás, quando apresentou a minha candidatura, falou com o Vítor Mota Pereira, que dirigia o Centro, contou-lhe a minha história e disse que eu não estava ali para ser cantora.

Bem se enganou!

Eu costumo dizer abençoadas tareias que levei ou não era quem sou hoje (risos).

É aí então que começa a sua carreira artística?

Sem que eu contasse com tal coisa. O meu pai levava-me à Emissora Nacional, porque eu tinha medo de andar sozinha. Para ser selecionada, tive de passar numa audição com o Mota Pereira. Muito treinei eu a cantar o Fado da Carta. No final, ele diz-me: ‘Mas por onde é que você tem andado?’

Estava lançada?

Mas nada é fácil na minha vida! Sai, entretanto, no Século Ilustrado, uma pequena notícia com o meu nome que dava conta que tinha nascido uma estrela. O meu marido era assinante do jornal e descobre-me.

Fez-lhe uma espera?

Foi aí que eu apanhei a minha última grande tareia. Alguém me diz que havia um senhor que queria falar comigo e, mal me volto, levei logo.

Alguém a defendeu?

Não. As pessoas que estavam presentes ficam todas muito assarapantadas, primeiro porque não sabiam que eu era casada, segundo porque foi tudo muito rápido: foi o tempo de ele me espancar e eu ir mais uma vez ao chão. Mas foi assim que resolvi a questão porque pedi a separação judicial de pessoas e bens e tinha os meus colegas como testemunhas. O divórcio, claro, foi só a seguir ao 25 de Abril.

Às vezes, a nossa vida é mais obra do acaso do que da nossa própria vontade…

Eu digo sempre isso. As coisas más que me aconteceram foram sucedidas sempre de coisas boas. Dou-lhe um exemplo: conheci o pai dos meus filhos um ano depois. Ele era engenheiro civil, formou-se na Universidade do Porto. Em 1959, ele estava na organização da queima-das-fitas, eu fui lá cantar e foi ele quem me veio pagar o cachet. Olhou para mim e disse: “Por uns olhos como os seus eu fazia quase tudo”. E fez. Os meus dois filhos são o exemplo disso.” (risos)

Fê-los por gosto!

Claro! Foi uma paixão muito bonita.

Mas não podia voltar a casar. No Estado Novo o divórcio não era permitido. Para todos os efeitos, ainda estava casada. Como é que registou os seus filhos?

É isso que tenho muita dificuldade de perdoar à Igreja Católica!

A Igreja católica sempre andou de braço dado com o regime, a lei era assim. Então, como contornou a situação?

Os meus filhos, como eu não suportava a ideia de ficarem com o nome do outro senhor que me batia, foram durante anos filhos de pais incógnitos. Até a mãe, que era eu, era incógnita, imagine!

Filhos de pais incógnitos, nessa época, havia muitos, mas de mães nunca tinha ouvido falar. Como é que os matriculou, por exemplo, na escola?

Na primária, foi com a ajuda de uma professora que eu conhecia. Mas quando a minha filha fez o exame da quarta classe, para a inscrever, eu tinha de apesentar a cédula onde apenas constava Maria Eduarda, sem pais e sem avós. Os meus pais chegaram a querer perfilhá-los, ficando como meus irmãos, uma loucura. (risos) E aí arrisquei (podia ter sido presa…): vou a uma conservatória, toda a gente me conhecia, e digo que tinha perdido as cédulas dos meninos. Acho que a senhora percebeu, mas fechou os olhos. Perguntou-me: “Então a senhora quer fazer um registo?” Disse que sim, lá ficaram com os nomes todos, e acabou a história. Quando cheguei a casa, o meu pai abriu uma garrafa de champanhe! Os meus filhos levaram anos para perceberem. Porque a minha mãe nunca lhes falou do meu casamento, só do pai deles que também era separado. Apenas quando a minha filha passou para a faculdade é que tive de contar.

Arriscou muito. Em 1969, num país altamente conservador, vence o Festival da canção com uma letra de José Carlos Ary dos Santos, “A Desfolhada”, que está no ouvido de toda a gente: “Eira de milho/Luar de Agosto/Quem faz um filho/Fá-lo por Gosto.” Isto era um desafio a um país moralista e altamente conservador.

Olhe, eu estava no camarim e a Lurdes Norberto, que era a locutora do festival, entra e pergunta-me: “Tu vais dizer aquilo, não tens medo?” Só mais tarde soube que o Ary tinha convidado quatro cantoras que leram o texto e recusaram-se a cantar.

Como é que a incumbência lhe foi parar às mãos?

Estava numa discoteca, na Avenida da Liberdade, onde cantavam muitos artistas e o José Mensurado, jornalista e apresentador, vem ter comigo e diz: “Tenho aqui uma letra do poeta comunista que escreve para a Amália Rodrigues. Ele anda à tua procura quer que a cantes. Perguntou-me onde andava aquela mulher muito grande, com uma voz muito grande, que é toda muito grande?” (risos) Por isso, quando o Ary me contactou, eu já eu tinha lido a letra e disso logo que sim.

Não teve qualquer tipo de receio?

Deixe-me lá ver do que é que eu tenho medo… Olhe, de morrer. Isso assusta-me muito. E assusta-me tudo o que não percebo. Há dias vi um programa sobre astronautas e havia imagens da Terra, aquela bola enorme. Faz-me uma grande inquietação. Só penso: quem é que a fez, como, a que horas e para quê, e porque é que aquela merda não cai! (risos) Também não percebo porque é que se diz que para fazer a paz é preciso primeiro fazer a guerra! Porquê? É por isso que só vejo telenovelas e a Fox Crime.

Mas deve de ter havido reações negativas em relação à Desfolhada.

Uma vez, num espetáculo, eu estava a cantar a Desfolhada, entre uma canção e outra gostava de falar com o público, e um senhor às tantas grita: “Como é que uma mulher como você canta uma coisa destas?” Como nunca fui frouxa, respondi: “Se o senhor não o faz é porque não sabe ou já se esqueceu.”

Teve uma longa carreira, pisou vários palcos internacionais. Alguma vez foi alvo de assédio?

Os homens tinham muito medo de mim! O que lhe vou contar não é propriamente assédio, mas revela o comportamento de uma época. Quando me deu para ser empresária e tive um restaurante (que só serviu para pagar dívidas…), um dia, o barman vem-me dizer que estava lá fora um cliente que queria falar comigo. O que queria o senhor? Montar-me casa. Para eu não ter ilusões, acrescentou logo que era casado, mas de 15 em 15 dias, vinha a Lisboa onde tinha casa na Avenida de Roma. De seguida, abre o pacote das ofertas: estava disposto a dar-me 15 contos para os pequenos, um carro e um casaco de peles. Respondi-lhe: “Estupidamente, está-me a oferecer tudo o que já tenho. O casaco de peles está ali no bengaleiro e fui eu que o comprei, o carro idem e está mesmo atrás do seu; em relação aos meus filhos, nunca irei ter esse dinheiro para lhes dar, mas não me incomodo nada com isso! E ele ainda rematou: “Você é muito estúpida, olhe que qualquer outra sua colega, no seu lugar, aceitava!” E o meu barman, que ouvia muito espantado aquele chorrilho, quando o outro sai, diz-me: “Senhora Dona Simone, se eu um dia, pelos anos, lhe quisesse fazer um agrado e oferecer uma caixa de bombons, aceitava?” Até chorei! O barman, que tinha patilhas e toda a pinta do Bairro Alto, teve uma sensibilidade que a outra besta desconhecia. Não sou comprável de maneira nenhuma. Talvez só por um maço de cigarros. E podia ser milionária. Tive um ou dois homens muito ricos interessados em mim e até um ministro do antigo regime.

Qual é a sua opinião sobre o movimento Me Too?

Então só 20 anos ou 30 depois de terem sido vítimas é que se queixam? Por que não o fizeram na época? Não percebo.

Só depois do 25 de Abril é que a contraceção em Portugal foi legalizada. E o aborto só deixou de ser crime mais de duas décadas depois. Alguma vez teve de fazer um aborto?

Felizmente não. Já havia médicos que prescreviam a pílula para determinados problemas femininos e eu sempre me precavi. Costumava dizer que engravidava só de olhar para a fotografia! (risos) Mas muitas mulheres que conheci, que não tinham hipóteses de cuidar de uma criança, o fizeram.

Foi uma mulher de grandes paixões?

Fui a mulher que foi contra tudo. Provavelmente havia outras, mas não eram tão visíveis. Amei quem tinha que amar, não amei quem não quis e separei-me das pessoas quando a relação estava esgotada. O pai dos meus dois filhos, um dia, chega a casa e comunica: “Fui colocado em Moçambique, vamos para Tete viver numa tenda no mato”. Ele era engenheiro, tinha recebido uma boa oferta de trabalho, mas eu tinha apenas 22 anos e o rapaz era ainda de colo, e respondi: “Vais tu!”. E foi, acabou.

Os cantores nessa altura corriam as antigas colónias para cantar para as tropas portuguesas?

Nunca fui a Moçambique, mas fui obrigada a ir cantar, em 1962, em Angola. Ainda tentei não ir porque os meus filhos eram muito pequenos, mas o ministro da Guerra respondeu-me que, se eu não fosse, não trabalhava mais. Pagaram-me 10 contos. Metade foi para os meus pais, comprei uma mala para ir no avião a hélice, que era o que havia na altura. Sei que, com todas as despesas que tive, fiquei com 500 escudos. Divida isso por 99 espetáculos e veja lá se valia a pena correr o risco! Nem percebia qual era a necessidade daquela guerra.

Nessa época, o clima em Angola era complicado. Um ano antes, tinha havido a revolta da UPA, com massacres indiscriminados à população e a tropa portuguesa pagou com a mesma moeda…

E nós eramos um grupo de 12 e fomos logo atirados para o norte de Angola onde a coisa foi mesmo feia. Fiz do Negage a Carmona, hoje Uíge, de noite, em jipe aberto, capacete na cabeça, com um motorista que era militar e que ia dizendo: “Ontem, naquela curva, morreram 20”. Almocei ao lado de um tenente que tinha cinco granadas numa mão. E eu dizia: “Ó meu tenente, agora, se não se importava, deixava repousar essas granadas”. E ele: “Não, não, porque, se eu tivesse ontem estas granadas, os meus camaradas não tinham morrido…” E você responde o quê? Dez dias a comer bifes de pacaça e bacalhau cru, sem água. Só uísque com gelo. Foi onde eu comecei a gostar dele… (risos) Voltei à dita Metrópole, antes das cartas que enviei para a minha mãe, que já vinham abertas.

Voltando às paixões…

Eu não tive muitas paixões. Não tinha tempo. Era cantar, cantar, cantar. Cantei até na noite em que a minha mãe morreu. The show must go on. Tinha dois filhos e era só eu a ganhar! Amores sérios foram mais dois. O Henrique Mendes, que foi outro escândalo. Também estava separado, tinha uma filha e voltara a viver com a mãe. Andámos dois anos escondidos. Até deu direito a uma reunião de Conselho de Ministros.

Porquê?

Ele era muito conhecido, locutor do telejornal. Um dia, a Flama, revista católica, escreve na capa:” Locutor perdido por uns olhos verdes”. Enfim, éramos um mau exemplo. Isso foi antes da Desfolhada, foi em 1965, quando eu ganhei o primeiro festival da canção, com o Sol de Inverno. O Henrique queria ir comigo a Nápoles onde eu ia representar Portugal no festival da Eurovisão e o governo, em Conselho de Ministros, decidiu que não. O Henrique, então, tenta impor que um primo dele me acompanhasse; também não foi aceite e acabei por ir com um homem do Governo. Veja como eram aqueles tempos!

Uma vida completamente policiada?

Sim, mas não me impediu de fazer o que quis. Depois a história acabou mal, ele era muito mulherengo, mas eu percebi sempre quando ele me traía. Chegava tarde e a más horas a casa. E eu dizia-lhe: “Então, o telejornal hoje acabou muito mais tarde!” (risos) Mas foi com o fechar deste capítulo que conheci o Varela [Alberto Varela Silva, ator e encenador], o homem que mais amei. Na minha vida, há tragédia, mas também comédia. Conheci-o numa peça em que entrei com a Laura Alves. Começou logo a embirrar comigo. Eu tinha um tique no pé: quando cantava e havia uma nota mais alta, levantava o calcanhar direito como se isso me ajudasse. Então ele diz-me: “Não quero aqui pés de vedeta!” Era um chato, mas perdi o tique. Um dia, entro no meu carro para ir para a Costa da Caparica, onde tinha alugado uma casa para os meus filhos poderem fazer praia, e descubro uma carta com os seguintes dizeres: “Vai para a praia, vai à merda, compra uma Marie Claire, parte uma cadeira!” E eu: “Mas que é isto? Emparveceu!”

Uma estranha forma de amar…

(risos) Podia haver uma forma mais bonita de se declarar, mas esta era a dele.

Analisando a sua vida, parece que lhe colocaram vários pedregulhos pelo caminho para a testarem. Quais foram os momentos, para além dos que já falámos, que mais a marcaram?

Diria que três. O primeiro, pouco tempo depois de cantar a Desfolhada, quando perdi a voz.

Como é que isso aconteceu?

Estava num espetáculo no casino da Póvoa de Varzim: canto a primeira canção, a segunda e, à terceira, fiquei de boca aberta. Meio mundo a olhar para mim. Saio do palco, assustada, sem perceber o que estava a acontecer. O Artur Garcia vem ter comigo ao camarim e diz-me “fala!”. Agarrei num papel e escrevi “estou muda”. Depois fui a um médico que me diz que não voltaria a cantar. Foi do caraças! Só pensava em como iria criar os meus filhos daí para a frente.

O que lhe foi diagnosticado?

Só sei que foi provocado por cantar com a voz mal colocada e por excesso de trabalho. Levei muito tempo para perdoar ao meu agente artístico porque ele me fez cantar com faringites, laringites, gripes… Mesmo quando eu lhe apresentava atestados médicos, dizia-me: “Tens de cantar, não te esqueças que és cabeça de cartaz!”.

O que é que fez até recuperar a voz?

Vendi bonecos numa loja, estive num escritório, até que me convidaram para ser locutora de continuidade no casino da Figueira da Foz. Há um dia em que o Carlos do Carmo vai lá cantar. Apresentei-o e, passados uns segundos, ele chama-me ao palco. Tinha tudo combinado com o guitarrista e só me diz “canta três tons abaixo do teu”. Fiquei aflita, mas percebi que afinal podia voltar a cantar, cantando de outra maneira.

Disse que teve dois momentos muito maus na vida. Qual foi o segundo?

A vida fartou-se de me mimar. Depois, em 1988, veio o cancro na mama. Também estava num espetáculo, no Porto, quando sinto uma grande picada no peito. Vi logo o que era. Fui fazer exames e confirmou-se. Só chorei no carro, no regresso a Lisboa. Tive de fazer 55 sessões de radioterapia, estava a fazer uma telenovela e nunca faltei a uma gravação.

Imagino que o terceiro momento tenha sido quando morreu Varela Silva…

Sim, nunca me habituei à sua perda. Ele morreu com mesotelioma, um cancro provocado pelo amianto que havia no Teatro Nacional. O médico perguntou-me se eu não queria pedir uma indemnização. Não o fiz por respeito ao Varela e ao amor que ele tinha por aquele teatro. Morreram ainda mais três pessoas e eles retiraram aquilo tudo.

A Simone fez de tudo: cantou, fez teatro, cinema, jornalismo. De que é que gostou mais?

Só não gostei de cinema. É um espartilho. Corta a cena, muda a cena, a luz não está boa… Do resto, gostei de tudo. Cantei 430 canções, é obra!

Como jornalista, quem gostou mais de entrevistar?

O Bonga [José Adelino Barceló de Carvalho, cantor e compositor angolano], que me disse que a pátria dele era Portugal. Tive uma entrevista muito difícil com um rapaz que era homossexual que partilhou comigo que as primeiras pessoas a quem falou sobre a sua sexualidade foram os pais. Com o Jorge Sampaio, que me veio a condecorar, também gostei muito. Às tantas, trocou de papel comigo e perguntou: “Olhe lá, porque é que não está a fazer telenovelas?” (risos) A entrevista mais difícil foi com Almeida Santos. Tinham-me dito que havia dois assuntos em que eu não podia tocar: droga (porque a filha, toxicodependente, se suicidara por isso) e a regionalização. Pois falei dos dois temas e ele respondeu.

Quem é que não conseguiu entrevistar?

Álvaro Cunhal. Nunca fui comunista, mas tinha uma grande admiração por ele. Liguei para o PCP, disse o meu nome e ele veio ao telefone. “Olá, sôtor, como está?” E ele: “Trate-me por camarada!” Respondi logo: “Camarada não, isso é na tropa”. Acabou por recusar a entrevista, disse-me que naquela altura da sua vida já só conversava em família. Quando nos despedimos, acrescentou: “Continue a ser a mulher que foi até aqui”. Desliguei e tive um ataque de choro.

Sempre cantou poetas de esquerda. Politicamente, em que área se situa?

Nunca estive inscrita em qualquer partido, mas sempre votei PS. Gostei muito do Ary e, apesar da admiração que tinha pelo Cunhal, não gosto nada do PCP. Um dia, o Ary pede-me que passe por sua casa. Queria que eu fosse cantar à festa do Avante! e tinha um cheque de 300 contos para me pagar. Disse-lhe que nem pensar!

Teve uma grande exposição mediática. Hoje temos as redes sociais, as fake news. Ainda há poucos dias, vi uma notícia que sugeria que a Simone estava muito mal, abri e fui parar a um site pornográfico. Como lida com disso?

Uma porcaria que acaba por afetar as pessoas. A diretora da Casa do Artista também viu essa notícia e avisou logo os meus filhos que aquilo era falso e que eu estava bem. Mesmo assim, o meu filho, ao fim do dia, passou por cá. Ficou angustiado, está claro.

No seu tempo havia os boatos. Lembro-me de, até nos corredores da Igreja, se falar que tinha tido um caso com o patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro…

E até fui chamada ao João Soares Louro, na altura presidente da RTP. O D. António, na altura, era o padre da estação. Era um homem muito bonito, tinha o cabelo muito ondulado e passava água pelo cabelo para o alisar. As mulheres andavam caídas por ele. Um dia houve uma viagem de barco organizada pela RTP. Ao jantar, estava eu, o Henrique Mendes e o João Batista Rosa (que era repórter) na mesma mesa e o D. António, que tinha a sua mesa com outros padres convidados, vem na nossa direção e senta-se à minha frente. No dia a seguir, fui chamada ao Soares Louro. Tinha recebido um telegrama a dizer que eu andava enrolada com o padre (risos).

Quando se fala da Simone, situam-na como cantora, mas o que faz no dia a dia? O que gosta de fazer?

Fazia muita renda, mas agora já não consigo. Descontraía-me. Gosto de ver televisão, de ópera. Continuo a gostar dos mesmos cantores: Jacques Brel, Edith Piaf, Barbra Streisand.

E os novos artistas? Acompanha?

A Carminho, o Zambujo, o Diogo Piçarra. Não gosto de vozes ‘nha-nha-nha’…

Por que veio para a Casa do Artista?

Porque vivia num quarto andar e os meus filhos tinham medo que eu um dia caísse e não tivesse ninguém que me socorresse. Gosto de estar aqui, tenho o quarto mobilado com as minhas coisas e tenho amigos. Às vezes, é triste ver antigos colegas, que também aqui estão, e já não reconhecem ninguém.

Aos 87 anos, o que é que a vida lhe ensinou?

Ensinou-me que há que aprender, mesmo quando não se está na rua principal, a arranjar um atalho ao lado que tenha flores e uma árvore para se apanhar um bocadinho de sol.

Jornal Sol

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