Jean-Michel Jarre. O visionário e pioneiro da música eletrónica

Quando começou não tinha referências. Tinha uma mistura de entusiasmo e inocência para abrir portas e desbravar territórios inexplorados. «Sinto que fiz parte da primeira onda de abordagem à música de forma diferente, de uma maneira nova e empolgante e sinto-me muito privilegiado por cronologicamente ter estado lá na hora certa, no início de algo novo e interessante», afirmou numa entrevista à revista britânica Classic Pop em abril deste ano. Compositor, intérprete, produtor, visionário, inovador, Jean-Michel Jarre foi considerado, nos anos 80, um «absoluto futurista». Muitos afirmavam que a sua música os fazia viajar até ao espaço já que era protagonista de concertos de dimensões colossais, espetáculos ao ar livre nos quais incluía efeitos laser, de pirotecnia, conjugando imagens projetadas com a arquitetura existente no local, juntando a isso os efeitos surround – um sistema que cria uma experiência sonora imersiva, onde o som parece vir de todas as direções, simulando a perceção sonora do mundo real –, dos seus temas.
Para se perceber a dimensão dos seus feitos ou projetos (já que este não se chegou a realizar), em 1986, organizou um concerto com a NASA: tratava-se de um espetáculo cujo ponto alto seria um solo de saxofone feito pelo astronauta e músico Ronald McNair, um dos tripulantes do Challenger, diretamente no vaivém espacial. A música Rendez-Vous VI estava programada para ser a primeira do mundo gravada no espaço, enquanto os seus batimentos cardíacos seriam usados como amostras de som na mesma música. A sua performance seria projetada ao vivo num grande ecrã durante o concerto na cidade de Houston. Após o desastre da Challenger a 28 de janeiro, a música foi gravada com outro saxofonista, recebeu o nome de Last Rendez-Vous – Ron’s Piece e tanto a canção como o álbum foram dedicados aos astronautas mortos no acidente.
«Desde o seu papel pioneiro na música eletrónica, o seu uso de tecnologia e produção de áudio multicanal, até às suas recentes explorações nos domínios da performance em realidade virtual e do metaverso, a tecnologia está na vanguarda de tudo o que ele faz», lê-se na biografia presente no seu site oficial. «Hoje é o momento mais emocionante para criar, fazer música e partilhá-la de diferentes formas e em diferentes meios», afirma atualmente o artista.
Aos 76 anos, ao todo, Jean-Michel Jarre lançou 22 álbuns de estúdio, vendeu mais de 85 milhões de discos em todo o mundo e bateu quatro recordes no Guinness World Records Book pelo público presente nos seus concertos. Mas de que forma chegou aqui? Como é que conseguiu ver mais além, revolucionar a música e tornar-se um dos pioneiros do estilo eletrónico?
Um olhar ‘fora da caixa’
Nasceu em Lyon em 1948. Filho do famoso compositor de bandas sonoras de filmes, Maurice Jarre, que ao longo da sua carreira ganhou três Óscares, quatro Globos de Ouros, dois BAFTA, GRAMMY, ASCAP e que possui uma estrela na Calçada da Fama, em Hollywood Boulevard, e de France Pejot, uma antiga militante da Resistência Francesa, os seus pais separaram-se quando este tinha apenas cinco anos. «Eu tinha um relacionamento difícil com o meu pai, mal o via», confidenciou ao The Guardian, em 2022. No entanto, a sua relação com a mãe era muito boa. «Era uma mulher extraordinária e corajosa – uma figura de destaque na Resistência Francesa. Lyon acaba de batizar uma rua com o nome dela. Visitei-a com os meus filhos para comemorar. É estranho saber que as pessoas se vão conhecer e se amar numa rua com o nome da minha mãe», partilhou com o jornal britânico.
Começou por vender quadros – gostava de pintar – para ajudar Pejot com as finanças da família e durante a sua adolescência nunca foi «obcecado» por ter uma carreira musical. Isso surgiu depois.
Estudou composição musical clássica antes de, aos 20 e poucos anos, se aventurar no rock e, durante um breve período, liderar uma banda protopunk chamada The Dustbins. Recorde-se que protopunk é um termo retrospetivo usado para descrever bandas e artistas que, embora não sejam classificados como punk rock, foram precursores e influenciaram o desenvolvimento do género.
De acordo com a Antena 1 completou a formação ao integrar, em finais dos anos 60, o Groupe de Recherches Musicales (GRM) dirigido por Pierre Schaeffer onde aprofundou o seu interesse pela exploração da música eletrónica. Colaborou depois como compositor para discos de cantores franceses, até meados dos anos 70. Assinou canções para vozes como as de Françoise Hardy, Patrick Juvet ou Christophe. Entendeu depois que o seu caminho não seria o das explorações que fizera ao lado de Pierre Schaeffer e, depois de «um esforço caseiro, longo e dispendioso», criou a obra que lhe daria visibilidade e que marcaria o seu percurso. Gravado num estúdio improvisado que montou na sua cozinha, Oxygène, editado em 1976, cativou todo o mundo. Mas o sucesso não foi óbvio, já que foi rejeitado por todas as grandes gravadoras. «Eles reclamaram que não tinha drama, não tinha cantor e que cada música tinha 10 minutos de duração», explicou ao The Independent, em 2017. Foi depois lançado por uma gravadora independente francesa, vendeu 12 milhões de cópias tornando o seu autor numa superestrela. «A composição de Oxygène é simples, mas longe de ser ingénua. Era diferente de toda a música eletrónica da época, talvez sendo essa uma das razões objetivas do seu sucesso. Havia ali algo onde as pessoas se reconheciam de uma forma sensual, emocional, e não apenas intelectual», disse numa entrevista em 2020.
De acordo com o jornal online britânico, Jarre é obcecado pela teatralidade da ópera há muito tempo e, quando decidiu apresentar-se ao vivo, ele próprio se mostrou inflexível em fazer algo que não fosse grandioso. «Um homem atrás de um sintetizador durante duas horas não é a coisa mais sexy do mundo, pois não? Inspirei-me nos filmes de Stanley Kubrick e queria criar espetáculos», referiu. E conseguiu. Foi o primeiro artista pop ocidental a apresentar-se na China após a Revolução. Quando atuou na recém-concluída área de Docklands, em Londres, em 1988, usou mais fogos de artifício do que a média das festas de Réveillon, e quando tocou na Praça Vermelha de Moscovo em 1997, 3,5 milhões de pessoas assistiram ao concerto.
Uma vida de paixão e sacrifícios
Jean-Michel Jarre foi casado três vezes e teve três filhos. Segundo o artista, que ainda está no ativo e que não parece ter a idade que tem, a música deu-lhe uma boa vida. No entanto, foram necessários muitos sacrifícios. «Diria a qualquer pessoa que esteja a começar que, se a prioridade na vida for a felicidade, não se dedique à música. Não vou reclamar porque sei que fui muito privilegiado, mas música e espetáculos são um vício, uma droga pesada. Fazer música corrói a tua vida ao ponto de não sobrar espaço para mais nada», desabafou. «Para quem está de fora, a vida de artista parece um sonho, mas há aspetos muito sombrios. Quem faz música faz porque é tudo o que sabe fazer», acrescentou.
O artista tem explorado a inteligência artificial nos seus concertos, conseguindo ir muito além daquilo que acontecia nos anos 80. «Na altura foi uma loucura. Não existia nada igual. Nenhum artista que tivesse nos seus espetáculos aqueles efeitos visuais. Era mesmo uma coisa de outro mundo. Hoje vemos isso por todo o lado», afirma Luísa Porto, que acompanhou o seu percurso musical.
Escreve Nuno Galopim, da Antena 1, que durante a pandemia, este acentuou uma nova frente de trabalho criando concertos virtuais nos quais é possível marcar presença como avatar. «Dessas experiências surgiu o ‘Welcome to the Other Side: Concert from Virtual Notre-Dame’, um disco ao vivo criado numa Notre-Dame virtual na noite de passagem de ano de 2020 para 2021», detalha. Além disso, criou a aplicação EoN que cria música sempre diferente cada vez que o utilizador acede aos seus conteúdos.
Ou seja, usa um algoritmo para criar música a partir de um banco de batidas, melodias e acordes compostos especificamente por Jarre para o projeto, resultando «numa experiência musical nunca repetitiva e completamente única para todos os usuários». O algoritmo foi desenvolvido por Alexis Zbik e Vianney Apreleff, da empresa francesa de tecnologia musical BLEASS.
Para o artista a app é «uma criação musical e visual infinita». «Pessoalmente, sinto que EoN é um dos meus projetos criativos mais emocionantes desde a minha estreia com Oxygène (…) É uma obra de arte orgânica sem fim, nunca repetitiva, que viverá e crescerá para sempre no singular no continuum espaço-tempo de todos, na ponta do dedo», deseja.
Jornal Sol