Como a China vence sem disparar um tiro

A China ascendeu no panorama geopolítico internacional de forma silenciosa, mas inexorável, através da aquisição de infraestruturas estratégicas, da imposição de uma homogeneidade interna férrea, da repressão sistemática de minorias étnicas e religiosas e da consolidação de um modelo económico que tornou o mundo dependente da sua produção industrial. O resultado é uma supremacia não declarada, mas já palpável.
No plano externo, a China tem conquistado influência global por via de investimentos vultuosos em infraestruturas, sobretudo em países vulneráveis. Esta estratégia, institucionalizada em 2013 com a iniciativa “Belt and Road” (Um Cinturão, Uma Rota), consiste em financiar portos, estradas, ferrovias e centrais elétricas em dezenas de países, criando corredores comerciais dominados por capital chinês. O objectivo declarado é a conectividade euroasiática; o efeito prático é a expansão da presença chinesa em ativos estratégicos, frequentemente à custa da soberania financeira dos países envolvidos.
É neste contexto que emerge o conceito de “armadilha da dívida”, cunhado pelo analista Brahma Chellaney. Trata-se de uma táctica pela qual a China financia obras gigantescas em países em desenvolvimento, que, ao acumularem dívidas impagáveis, se veem forçados a ceder controlo sobre recursos ou infraestruturas. O caso do Sri Lanka é paradigmático: incapaz de saldar uma dívida bilionária, o governo cedeu à China a concessão do Porto de Hambantota por 99 anos. Na África, esta prática é recorrente. Angola, por exemplo, contraiu mais de 45 mil milhões de dólares em financiamentos chineses entre 2000 e 2022, sendo que cerca de 40% da sua dívida externa é hoje devida à China. Países como Zâmbia e Chade enfrentaram incumprimentos financeiros e foram obrigados a renegociar os termos dos créditos chineses. Mesmo na Europa, Montenegro contraiu um empréstimo de mil milhões de dólares para construir uma autoestrada, vendo a sua dívida pública ultrapassar os 100% do PIB. O contrato prevê que, em caso de incumprimento, a China possa reclamar ativos e terrenos como garantia.
A Europa não escapou a esta ofensiva económica. Após a crise financeira de 2008 e a subsequente crise das dívidas soberanas, países como Grécia, Portugal e Itália abriram as portas ao capital chinês. O Porto do Pireu, na Grécia, é um exemplo eloquente: afundada em dívidas, a Grécia privatizou ativos e a estatal chinesa COSCO Shipping adquiriu 51% do porto, elevando posteriormente a participação para 67%. Hoje, Pequim administra este porto crucial, principal porta de entrada de produtos asiáticos na Europa. A COSCO já negociou a compra de uma fatia do Porto de Hamburgo, na Alemanha, e o Shanghai International Port Group assumiu o porto de Haifa, em Israel. Estima-se que empresas chinesas controlem cerca de 100 portos em mais de 60 países, num arco que se estende do Mediterrâneo ao Mar do Sul da China.
Portugal, pela sua situação financeira delicada no início da década passada, seguiu a mesma tendência. A China tornou-se um dos principais investidores no país, aproveitando as privatizações pós-troika. A China Three Gorges comprou 21% da EDP, a State Grid adquiriu 25% da REN, e o grupo Fosun comprou a seguradora Fidelidade. Setores vitais como a energia, os seguros e a banca passaram parcialmente ao controlo de acionistas chineses. Em troca, Portugal recebeu um influxo de capital numa altura de necessidade. Contudo, a longo prazo, levanta-se a questão: ao alienar pedaços da sua infraestrutura crítica e do seu património empresarial, não estará Portugal a facilitar a vitória chinesa?
Importa sublinhar que estas empresas chinesas não são entidades privadas no sentido ocidental do termo. Na China, a distinção entre o sector público e o privado é, na prática, inexistente. As grandes corporações estão intimamente ligadas ao Estado e ao Partido Comunista Chinês, sendo frequentemente dirigidas por quadros partidários e sujeitas a orientações políticas. A sua actuação no estrangeiro obedece a desígnios estratégicos definidos por Pequim, e não a meros interesses comerciais. Assim, quando uma empresa chinesa adquire um porto, uma rede elétrica ou uma seguradora, é o Estado chinês que, por via indirecta, estende a sua influência.
Paralelamente à expansão económica externa, a China cuidou de forjar internamente uma sociedade coesa e obediente, fruto da homogeneidade imposta pela revolução comunista. Desde 1949, com a proclamação da República Popular da China por Mao Tsé-Tung, o país foi unificado sob o jugo do Partido Comunista, eliminando dissidências e uniformizando a sociedade.
A Revolução Cultural, embora caótica, foi emblemática neste esforço de moldar a população: tradições foram varridas, intelectuais perseguidos, e a juventude mobilizada para impor a ortodoxia maoísta. Hoje, a China colhe os frutos dessa uniformização: pode planear a longo prazo sem pressões opositoras internas, mas convive com um grau inquietante de repressão para manter tudo sob controlo.
A perseguição às minorias étnicas e religiosas é o lado mais sombrio desta busca pela coesão nacional. O caso dos uigures, minoria muçulmana turcomena de Xinjiang, é internacionalmente o mais condenado. Mais de um milhão de uigures foram enviados para campos de “reeducação” política, onde são forçados a renunciar à sua fé islâmica e costumes, aprendendo em seu lugar lealdade ao Partido e à língua chinesa oficial. Multiplicam-se os testemunhos de famílias separadas, mesquitas demolidas, esterilizações forçadas e trabalho compulsório. Documentos revelam que autoridades chinesas mudaram os nomes de cerca de 3.600 aldeias em Xinjiang entre 2010 e 2022, suprimindo referências linguísticas ou religiosas uigures e substituindo-as por termos em mandarim ou conceitos alinhados ao Partido, como “Felicidade”, “Unidade” e “Harmonia”. No Tibete, verifica-se uma repressão semelhante. A cultura tibetana é sistematicamente diluída, a língua desincentivada nas escolas, e os monges submetidos a “educação patriótica”. Xi Jinping, em visita recente a Lhasa, enfatizou a necessidade de “unidade étnica e harmonia religiosa”, o que, na prática, significa tolerância zero com identidades paralelas. A vigilância é constante, e qualquer lealdade que não seja dirigida a Pequim é considerada subversiva.
A tudo isto acresce um dado incontornável: o mundo tornou-se estruturalmente dependente da produção chinesa. A economia global, tal como está hoje configurada, não pode funcionar sem o “Made in China”. Desde componentes eletrónicos a maquinaria pesada, passando por bens de consumo, medicamentos e materiais de construção, a cadeia de abastecimento mundial está profundamente enraizada na indústria chinesa. Qualquer perturbação significativa na produção ou exportação chinesa provoca efeitos em cascata nos mercados internacionais. Esta dependência confere a Pequim um poder silencioso, mas formidável: o de condicionar decisões políticas e económicas alheias sem recorrer à força.
Depois de examinar todos estes elementos – expansão económica estratégica, rigor ideológico interno, repressão calculada e dependência industrial global – a conclusão impõe-se: a China logrou, de forma paciente e sistemática, alcançar uma posição de supremacia silenciosa. Ao comprar infraestruturas e favores mundo fora, Pequim ganhou influência sem travar batalhas convencionais; ao domesticar a sua população, assegurou que nada a desvie dos seus objetivos de longo prazo; e ao tornar-se indispensável à economia mundial, blindou-se contra retaliações eficazes. O resultado é que, em numerosos tabuleiros, a China já venceu ou está em vias de vencer.
Outrora ridicularizada, a ideia de uma hegemonia chinesa global não militarizada tornou-se real. O Ocidente assiste, atónito e atrasado, à consolidação desta nova ordem. Resta saber se as democracias liberais conseguirão articular uma resposta coordenada à altura deste desafio histórico, ou se estaremos destinados a aceitar um século XXI moldado ao estilo de Pequim – onde estradas, portos e redes 5G carregam a marca “Made in China”, e onde os valores de pluralismo e liberdade cedem espaço à “harmonia” definida pelos engenheiros sociais do novo império do Meio.
observador