Amélia: rainha, pintora, mecenas

Na introdução ao seu livro, José Alberto Ribeiro, diretor do Palácio Nacional da Ajuda e do Museu do Tesouro Real, a ele associado, não deixa margem para dúvidas sobre o propósito deste seu trabalho: “A rainha D. Amélia é, certamente, a monarca que mais interesse tem suscitado nos últimos anos, com obras publicadas em Portugal e em França, mas nunca na sua vertente de mecenas da conservação e restauro do património e como pintora”, e ainda: “Menos conhecida é também a artista, como pintora apreciadora do desenho de “paisagem ao natural” e do património histórico que reúne em desenhos e aguarelas, organizando um verdadeiro museu de papel, pela recolha e classificação de objetos de arte e arquitetura, essencialmente medievais” (p. 9). Na p. 72 vemos uma fotografia de D. Amélia a desenhar nas escavações arqueológicas de Pompeia, na conhecida viagem de 1903 pelo Mediterrâneo para instrução dos príncipes —aparentemente o único registo de muitas ocasiões semelhantes, passadas em Portugal, durante as quais produziu uma expressiva obra pictórica, constituída por 383 trabalhos, entre desenhos, aguarelas, óleo e técnicas mistas.
Dez anos depois de ter participado na exposição itinerante e no livro “Tirée par …”. A Rainha D. Amélia e a fotografia, com Luís Pavão e outros (Documenta, 2016, 180 pp.), Ribeiro prossegue no digníssimo encargo de dar a conhecer melhor D. Amélia de Orléans (1865-1951), rainha portuguesa desde 1889, publicando este livro que é uma síntese da sua tese de doutoramento em História da Arte, defendida em 2024 na Faculdade de Letras de Lisboa e que trouxe a público muita documentação inédita. O indisputável “amor incondicional a Portugal e aos portugueses” (dito pela rainha, citada na p. 11) tem plena confirmação nesta obra, dando alento e bálsamo especialmente a quantos confiam que a Monarquia é — glosando um grande estadista — o pior dos regimes, à exceção de todos os outros… Leitura para qualquer tempo, Rainha D. Amélia, pintora e mecenas do património histórico oferece-nos no atual contexto político do país uma oportunidade de avaliação de contrastes, que certamente não buscou mas aí está de facto, à disposição de quem vê e pensa.
A filha do conde de Paris nasceu em Twickenham, nos arredores de Londres, em meados de um século particularmente marcado pelo revivalismo artístico e por cuidados com o património, com a valorização das obras de arte e os monumentos antigos e o restauro de grandes palácios. A egitomania estivera de tal modo em voga, que o Obelisco de Luxor — uma oferenda ao rei Luís Filipe — foi erguido na Place de la Concorde, em Paris, 29 anos antes do nascimento de Amélia, cujos primeiros anos de vida coincidem com a reabilitação e restauro do Château d’Eu, na Normandia, uma das principais residências dos Orléans em França, realizada nada menos que por Viollet-le-Duc entre 1874 e 1879. Além disso, “parte da sua infância e adolescência foi passada junto dos seus avós, duques de Montpensier, nos palácios de Sanlúcar de Barameda ou de San Telmo, em Sevilha, na Andaluzia, repletos de obras de arte e numa zona cheia de tradições que sempre apreciou e que sempre gostou de visitar” (p. 22). Em Paris, os Orléans utilizaram uma parte do palácio Matignon, atualmente a residência oficial do primeiro-ministro francês. A consequência disso foi que, “desde cedo, esta princesa com forte formação artística e consciência do valor patrimonial das obras de arte, mostrou interesse pelas artes e pela sensibilização e proteção do património histórico português, da arqueologia ao restauro de sés catedrais” (p. 23).
Havia muito por fazer, ou até, estava quase tudo por fazer. Apesar dos contributos de Almeida Garrett e de Alexandre Herculano (um dos seus “escritores eleitos”, p. 130) sobre o Gótico em Portugal, que José Alberto Ribeiro percorre, faltava dramaticamente uma história da arte nacional que alicerçasse campanhas de restauro, de resto tão necessárias, em particular desde a já longínqua extinção das ordens religiosas, em 1834. Nesse domínio, a memória da nacionalidade fundada a 5 de Outubro de 1143 era claramente devedora de trabalhos de estrangeiros em visita — e de alguma forma continuaria a sê-lo, se pensarmos no norte-americano Robert Smith (1912-75) e nos seus estudos essenciais sobre a nossa arquitetura. Ainda assim, refere o autor, “com a monarquia constitucional portuguesa, iniciada por D. Maria II e o seu consorte, D. Fernando de Saxe Coburgo-Gotha, a educação para o colecionismo, antiquariato e pelas artes seria uma constante, criando nas gerações futuras dos Bragança grandes interesses culturais e uma prática artística variada que se manteria até 1910. Podemos até estabelecer alguns paralelos entre a atuação de Fernando Filipe de Orléans e D. Fernando de Saxe Coburgo-Gotha” (p. 46), pelo que é “no seio desta família real, tão ligada à arte e ao colecionismo, que D. Amélia entra por casamento com o príncipe herdeiro, D. Carlos” (p. 47), ele próprio “um dos pintores mais virtuosos da sua época” (p. 77).
José Alberto Ribeiro pôde, por isso, elencar com facilidade algumas intervenções da Rainha da proteção das artes, dos artistas e dos ofícios tradicionais, que decorre a par da sua filantropia social nos domínios da saúde, do ensino e em particular da proteção das crianças — sem contudo, por uma só vez, as conjugar ou alinhar com os extensos trabalhos oceanográficos e ornitólogos do marido, também eles focamente patrimoniais, de que resultarão o oceanário de Lisboa (furiosamente delapidado, convém saber, no fim de 1910…) e os três álbuns Aves de Portugal com 301 estampas de Enrique Casanova, dirigidos por D. Carlos. A intervenção pessoal da Rainha na conservação de monumentos nacionais tem a sua principal demonstração na longa campanha de restauro medievalista da Sé Velha de Coimbra, a partir de 1893 — que ela segue a par e passo e suporta financeiramente (desenhando-a também) —, mas a generosa mão régia também se estende em apoio a escavações arqueológicas na romana Conímbriga em 1899, cujo andamento a preocupa, e ao restauro da Sé de Lisboa, que teve início em 1902 e cujos trabalhos por várias vezes visitou. Em vão protestou contra a fábrica de gás construída nas imediações da Torre de Belém (“vizinhança sacrílega”, disse a uma revista em 1897): “Escrevi, pedi, supliquei aos ministros das Obras Públicas. Zanguei-me, esgotei influência, macei toda a gente, e nada!”, dirá em 1938 a José Leitão de Barros em célebre entrevista (cit. p. 66).
A D. Amélia se deve o Museu dos Coches Reais, no antigo Picadeiro Real do Palácio de Belém, para albergar “uma coleção que sabia ser única no contexto europeu” (p. 69), decisão muito pessoal tomada em 1902 e que demonstra “uma clara preocupação de inventariar e conservar um acervo único em risco de se perder para fruição coletiva” (p. 68). Em menos de três conseguiu inaugurar o museu, inaugurado a 23 de maio de 1905, reunindo “tudo o que era apanágio das cavalariças reais e que ainda fosse recuperável” (p. 71), ao mesmo tempo que a Quinta de Belém foi remodelada para servir de residência oficial a chefes de Estado em visita ao país, a partir de setembro de 1908. Em nota de rodapé, Ribeiro não perdeu a oportunidade de registar com melancólica ironia que “Sem saber, D. Amélia preparava com dignidade a residência oficial do futuro presidente da República”, poucos meses depois… E embora a visita ao Egito com os filhos em 1903 não seja um tema direto do seu trabalho, o autor fala-nos dela precisamente para sublinhar que a Rainha, “conhecedora da ausência de consciência histórica portuguesa de artefactos de uma civilização pré-clássica tão relevante como a egípcia” (p. 74), trouxe para Portugal um lote de 453 antiguidades egípcias para serem integradas num museu nacional, um transbordo que, aliás, “acompanhou de perto”.
Os capítulos IV e V têm por título “A Rainha pintora” e “Os anos de exílio. Mecenato, coleção e dispersão”, abrindo portas para dois mundos, o privado e o público, em que a condição régia nunca está ausente, mesmo que a função esteja. A formação artística cedo iniciada teve em Lisboa continuação com o aperfeiçoamento do desenho e da aguarela com Enrique Casanova (1850-1913), e João Alberto Ribeiro diz-nos que “a obra artística que a rainha foi desenvolvendo não era um mero exercício diletante adequado à sua posição social” (p. 84). A maioria dos desenhos, de grande detalhe, são sobretudo de igrejas e museus, o que indicia o seu impulso patrimonialista. Os Reis inauguraram o Museu de São Roque em Janeiro de 1905, mas verdade é que “a rainha tinha particular gosto pelo acervo da igreja de São Roque e desenhava-o desde 1898” (p. 97). Desenhou profusamente em Alcobaça no ano 1892. Atente-se, por exemplo, nos desenhos da pia benta da rainha D. Leonor (p. 94) e do túmulo de D. Inês (p. 101) — ou na bela aguarela, datada de 1897, do colar que pertenceu à rainha Santa Isabel, no Museu de Coimbra (p. 91). Acompanhando vaga contemporânea de estudos científicos, também deu atenção a motivos etnográficos. Desenhos foram feitos em Vila Viçosa, e certa vez pediu a uma bela jovem que trabalhava no balneário termal de São Pedro do Sul que fosse ao paço “vestida de camponesa com capucha para a desenhar” (pp. 95, 96). Participou em exposições com finalidades filantrópicas e afins, e os 31 desenhos que fez sobre o Paço de Sintra acabariam num livro do visconde de Sabugosa destinado a financiar a Assistência Nacional aos Tuberculosos em 1903.
Amélia de Orléans e Bragança. Quando a rainha que “soube sofrer portuguêsmente” regressou a Portugal
No verão de 1910, preparava a edição dum álbum com 130 desenhos de arqueologia — um “museu-portátil”, na feliz expressão consagrada —, segundo as suas próprias palavras resgatando “vestígios da nossa antiga opulência, que escaparam à ação destruidora do tempo, ao vandalismo e ganância dos homens” (cit. p. 113). Dois desses trabalhos seriam, muito provavelmente, a Custódia dos Jerónimos, uma aguarela sobre o ostentório cinzelado por Gil Vicente em 1506, conhecido como Custódia dos Jerónimos, e o Relicário de Vasco da Gama, obras de 1910 que podemos observar nas pp. 124 e 125. O golpe republicano e o exílio adiariam o projeto editorial Mes Dessins, que acabou por concretizar-se em 1926 e 1928, com dois livros de grande dimensão e tiragem reduzida, publicados em Paris e Londres, respetivamente, por ela custeados. O primeiro tem por título Mes Endroits Préférés e o segundo Art et Archéologie, compilando desenhos e aguarelas dos dezanove anos em que foi rainha de Portugal. Arquitetura e arte sacra medieval, e também os motivos florais, perfazem mais de metade das temáticas artísticas representadas. É deveras notável — mas não surpreende — que “o produto da venda reverteria, uma vez mais, a favor da Assistência Nacional aos Tuberculosos de Portugal, obra que nunca esqueceria” (p. 153).
Para trás ficava a coleção de arte de D. Amélia, que se pode prescrutar em fotografias dos seus atelier e gabinete de trabalho no Palácio das Necessidades publicadas em periódicos da época, e que José Alberto Ribeiro elenca com pormenor para lhe estabelecer balizas estéticas, que são a do “gosto melancólico dos pintores seus contemporâneos”, adivinhando o fim duma época e o “caminho rápido para o Abismo” (sic) que 1910 e 1914-18 confirmariam inexcedivelmente, e 1939-45 reforçaria ainda. Nos 41 anos que D. Amélia viveu depois de sair exilada de Portugal, as suas doações de obras de arte a museus e o constante gesto de filantropia não deixam dúvidas sobre o carácter e o desígnio desta bela francesa que em Junho de 1939, oferecendo ao nosso país o seu retrato por Victor Corcos (1905), escreveu: “Quis dar à Nação Portuguesa, que tanto amo, e de quem tive a honra de ser rainha, esse testemunho da minha grande ternura, e da minha constante saudade, desejando que os portugueses me recordem sempre, com o mesmo afeto que eu lhes dedico” (cit. p. 155). Com este livro, José Alberto Ribeiro e a editora Caleidoscópio retribuíram-lhe — da melhor maneira possível — para que assim seja.
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