A arma do fogo

Os grandes incêndios rurais estão de volta e, com eles, as intermináveis diatribes por parte de governo, oposições, autarcas, generalistas, especialistas e colunistas, dos que acham que sabem e também dos que não sabem, mas não têm mais nada para fazer.
Sem respeitar cronologias, nem pretender ser exaustivo, recordo Eduardo Cabrita a acusar Maria Lúcia Amaral de não entender a importância dos aviões, António Nunes a sublinhar que devem ser os bombeiros a comandar as operações, Mariana Leitão a criticar a desorganização dos meios de combate, Tiago Oliveira a recomendar um comportamento responsável por parte da população, André Ventura a vociferar contra os incendiários, José Miguel Cardoso Pereira a analisar os progressos obtidos nos últimos anos em matéria de combate aos fogos, António José Seguro a pedir um pacto de gerações, Luís Montenegro a relembrar a finitude dos meios de combate, Henrique Pereira dos Santos a apontar para a falta de gestão florestal, José Luís Carneiro a congratular-se por o Governo ter seguido as recomendações do seu partido, os chicos-espertos de Marinhais a antecipar o espetáculo do fogo de artifício para contornar a situação de alerta que iria entrar em vigor e Ricardo Trigo a explicar as condições meteorológicas extremas que têm vindo a afetar o país.
A diversidade de opiniões e a multiplicidade dos assuntos debatidos impõem que se adote um racional, isto é, um esquema que oriente o raciocínio. Proponho uma metodologia simples em que um grande incêndio rural é comparado aos efeitos do disparo de uma arma – uma “arma do fogo”, por assim dizer. Ora, para que haja um disparo, tem de haver um gatilho premido, pólvora de boa qualidade, uma bala capaz de provocar estragos e, por último, mas não em último, uma arma apropriada.
No esquema conceptual proposto, toda a discussão acerca da hierarquia, competência e organização das forças de combate, bem como da estratégia posta em prática e da suficiência e adequação dos meios tem apenas que ver com a mitigação dos efeitos do disparo da “arma do fogo” e não com o disparo em si. Trata-se, obviamente, de aspetos muito importantes que não podem deixar de ser tidos em conta sempre que haja um disparo, mas que lhe são subsequentes. Pensar que se resolvem os problemas decorrentes do disparo de uma arma aumentando a quantidade e a operacionalidade dos meios de intervenção (após o disparo ter ocorrido) é um erro óbvio em que, infelizmente, ainda muitos incorrem.
Por sua vez, sendo o premir do gatilho a causa imediata do disparo, torna-se importante perceber se a “arma do fogo” foi disparada devido a uma causa natural, como um relâmpago associado a uma trovoada seca, a um acidente imputável a atividades humanas, como uma faísca provocada pelo contacto de uma linha elétrica com a copa das árvores, ou a um efeito decorrente de uma ação humana direta, seja negligente, como uma queimada, o uso de maquinaria ou o lançamento de foguetes de festa, seja criminosa. Neste âmbito, os apelos à população para que adote um comportamento preventivo de ignições, o aumento da vigilância, diurna e noturna, e a declaração de situações de alerta para todo o território são certamente medidas adequadas, mas não vão ao cerne da questão que é impedir que um disparo, caso venha a ocorrer, tenha consequências desastrosas.
Vem depois o aspeto da qualidade da pólvora que, no caso da “arma do fogo”, se liga diretamente às condições atmosféricas, nomeadamente uma temperatura elevada, uma humidade do ar reduzida e um vento intenso, sobretudo se sobrepostas a um período longo sem ocorrência de precipitação. Se bem que a meteorologia não possa ser controlada, os modelos de previsão permitem conhecer, com cada vez mais rigor, a evolução do estado do tempo e, desta forma, antecipar a “qualidade da pólvora”. De referir a este propósito que se podem também disparar tiros de pólvora seca, isto é, sem que haja balas na câmara. É o que se passa, por exemplo, no deserto do Sara em que, apesar das condições pirometeorológicas serem excelentes para garantir pólvora de altíssima qualidade, não há nada para arder.
De facto, o poder destrutivo do tiro depende sobremaneira das particularidades da bala, as quais, para a “arma do fogo”, são determinadas por características da paisagem como a orografia, a disposição do mosaico vegetado, o tipo de vegetação e o seu estado de stress e, sobretudo, a qualidade da gestão efetuada. As operações de fogo controlado, a limpeza dos terrenos, a construção de aceiros, a introdução de caprinos e ovinos e as campanhas de sensibilização são algumas das muitas ações envolvidas nos esforços que visam diminuir o poder destrutivo da bala.
No entanto, o aspeto verdadeiramente crucial é o da própria existência da arma; com efeito, sem arma deixa de ter sentido falar em disparos, pólvora ou balas e, por isso, um controlo eficiente que limite a proliferação de armas constitui a única forma verdadeiramente eficaz de reduzir os problemas decorrentes dos tiroteios. No caso vertente da “arma do fogo”, esse controlo é efetuado através do ordenamento do território. Trata-se, contudo, de uma medida muito dispendiosa que se estende por um intervalo longo de tempo e cujos resultados não são imediatamente percetíveis, características que a tornam difícil de ser aceite pela sociedade atual, egocêntrica e virada para o imediato. Neste sentido, uma forma porventura eficaz de mobilizar os cidadãos será de os convencer de que o território é uma “parte comum” do país e que, tal como acontece num condomínio, existem obrigações para com as partes comuns (seja um alicerce, seja um terraço de cobertura) ainda que delas não beneficiemos diretamente, uma vez que são essenciais para a manutenção do todo estrutural.
Evidentemente que uma proposta desta natureza levanta o problema da existência atual de saberes que permitam uma gestão eficiente das “partes comuns” do território. Ora, um tal conhecimento existe de facto, podendo qualquer um de nós obter uma cópia do Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais 20-30 com base na Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-A/2020, de 16 de junho. O problema é, portanto, tão somente de execução e, por esta razão, é eminentemente político. Conforme justamente afirmou não sei quem há uns dias, “tem havido progressos no combate aos incêndios, mas falta-nos formação porque informação temos de sobra”. Concordo inteiramente com a afirmação. Em boa parte, porque fui eu o tal não sei quem que a proferiu.
observador