O Choque Habitacional que poderá chocar com o IVA

O Governo anunciou, no Conselho de Ministros do passado dia 25 de Setembro de 2025, uma redução da taxa de IVA para 6% na construção de habitação nova cujo valor de venda dos imóveis construídos seja até €648.000,00, e para arrendamento com rendas até €2.300,00/mês. A medida foi apresentada como o “choque habitacional” necessário para dinamizar a oferta de casas, reduzir preços e relançar o investimento privado no sector.
O princípio da neutralidade fiscal e o seu risco de distorção Não podemos deixar de ter sempre presentes que o IVA, sendo um imposto neutro: não deve onerar o produtor nem distorcer a concorrência entre operadores que realizam operações semelhantes. O que nos parece poderá levantar desde logo a questão de saber se aplicar uma taxa reduzida apenas a determinados segmentos do mercado ou produtos com base no critério exclusivo de valor de venda ou valor de renda, poderá criar fronteiras fiscais artificiais dentro da mesma cadeia económica.
A construção de um edifício é uma operação única e contínua, mas com um destino económico misto — por exemplo, um promotor cria um empreendimento, composto por fracções autónomas que serão destinadas umas a comércio/serviços e outras, a habitação. Ora sendo que apenas a estas últimas será aplicável o novo regime fiscal e por sua vez a taxa reduzida de IVA. Se apenas parte das fracções (habitacionais) beneficia da taxa reduzida de IVA – 6% -, entramos num terreno perigoso: como deverá o promotor calcular o IVA dedutível dos custos de construção comuns (terreno, estruturas, fundações, infra-estruturas)?
O Código do IVA, prevê métodos de dedução de IVA relativamente a bens de utilização mista através da aplicação de um pro rata. Mas esta fórmula, embora tecnicamente viável, é complexa e sujeita a reavaliação no momento da utilização efectiva dos bens, e tem sempre que ser sujeita a ajustamentos posteriores no final de venda de todas as fracções autónomas do empreendimento.
Assim, se o promotor imobiliário suportar IVA a 6% de todos os fornecedores (materiais, empreiteiros, subempreiteiros), mas mais tarde, vender algumas das fracções para comércio ou para serviços, surgem duas questões práticas imediatas:
- Os fornecedores aplicam a taxa de IVA de 6% ou 23%? A resposta depende do destino conhecido à data da factura. Se não houver certeza de que a totalidade do edifício se destina a habitação, os fornecedores tenderão, prudentemente, a aplicar a taxa normal (23%) — o que adia o benefício e cria litígios potenciais.
- No final, será necessário um ajustamento do IVA para corrigir o imposto suportado “a mais” ou “a menos”. Mas tal ajuste, envolvendo milhares de operações, é administrativamente pesado e gera insegurança.
Assim, o que parece uma medida simples — aplicar 6% em vez de 23% — na prática exige um regime de afectação extremamente preciso e regulamentado, sob pena de criar desigualdade, litigância e insegurança jurídica.
O dilema do preço final Outra questão que não podemos deixar de referir surge no controlo do limite de preço: o diploma define que apenas construções destinadas à venda até €648.000,00 ou ao arrendamento com rendas mensais até ao valor de €2.300,00 beneficiam da taxa reduzida do imposto.
Veja-se desde já que o facto tributário, elemento que torna este imposto devido, ocorre na execução dos trabalhos, não no momento futuro da venda. O construtor/empreiteiro factura mensalmente, em função da execução física da obra, muitas vezes com recurso a autos de medição, aplicando a taxa que entende correcta.
E se o promotor imobiliário, inicialmente, estimar um preço de venda de €640.000,00, das fracções habitacionais, mas, após a conclusão do projecto de construção, o mercado valorizar e as fracções habitacionais forem efectivamente vendidas por €690.000,00?
De acordo com os princípios do IVA, o erro de taxa implica uma regularização a favor do Estado, correspondente à diferença entre 23% e 6% sobre todo o valor tributável. Mas — e aqui está o ponto crucial — não existe hoje mecanismo claro para liquidar retroactivamente essa diferença, ou existe neste caso um erro efectivo, para efeitos de aplicação do mecanismo de regularização do IVA?
Esta “regularização” que se venha a revelar necessária será feita por autoliquidação na declaração periódica? Por emissão de nota de débito? Por correcção oficiosa?
Sem uma norma expressa, os promotores ficarão vulneráveis: ou assumem o risco fiscal (com eventual correcção e coimas), ou optam por aplicar 23% desde o início, anulando o incentivo.
Além disso, a Administração Tributária teria de fiscalizar intenção e preço final, algo conceptualmente incompatível com o funcionamento do IVA, que tributa operações objectivas, não intenções de venda.
A vigência do regime até 2029 No seu comunicado de 25 de Setembro de 2025, o governo anunciou que o regime vigorará apenas até 2029, o que, em teoria, corresponde a quatro anos de aplicação efectiva. Contudo, em Portugal, o ciclo médio de um projecto imobiliário — desde o licenciamento até à venda — supera facilmente esse prazo, podendo atingir cinco ou seis anos.
Com escassez de mão de obra, demora no licenciamento camarário e aumento dos custos de financiamento, poucos promotores conseguirão iniciar e concluir um projecto completo dentro desse intervalo.
Na prática, a medida favorece apenas quem já tem projectos licenciados ou em fase de obra. Os restantes dificilmente conseguirão beneficiar do regime antes de este caducar. Pelo que o objectivo de incentivar nova construção parece estar a partida coiceado e causa ou, na melhor das hipóteses, investir em novos projectos em 2026 nas que muito provavelmente não vão estar concluídos e vendidos até 2029.
Um incentivo temporário, sem garantia de prorrogação, não altera decisões de investimento estrutural; no máximo, acelera ligeiramente as obras em curso.
Assim, este incentivo apenas nos parece que será aplicável à partida aos projectos imobiliários que já se encontram em curso, pelo que não parece à partida que poderá incentivar só por si a realização de novos projectos imobiliários de raiz.
Os especiais cuidados do legislador na regulamentação do regime Tendo por base o supra exposto, o diploma anunciado é politicamente atraente, mas poderá trazer problemas na sua aplicação prática como tentámos descrever.
Consideramos que merece especial cuidado, na regulamentação do presente regime fiscal os seguintes:
I. Critérios de aplicação da taxa reduzida quando coexistem habitação e usos mistos (art. 23.º CIVA); II. Regime de facturação e regularização para situações de variação do preço final acima dos limites; III. Mecanismo de controlo e autoliquidação do IVA “em falta” (diferencial entre 6% e 23%); IV. Clarificação do momento de aplicação da taxa — se no fornecimento do empreiteiro, na venda do imóvel ou em ambos;
V. Coordenação com as normas da Directiva 2006/112/CE, que apenas admite taxas reduzidas para habitação “de carácter social” ou “a preços acessíveis” (art. 98.º e Anexo III, ponto 10) — exigindo, portanto, uma definição nacional objectiva de “preço moderado” compatível com o direito europeu.
Conclusão O “choque habitacional” pode transformar-se num choque jurídico e fiscal, se o Governo não definir com rigor as fronteiras operacionais do regime.
O IVA é um imposto de estrutura europeia, regido pela neutralidade e proporcionalidade. Estas medidas são bem vindas, mas apenas se forem coerentes com a mecânica do imposto e transparentes na aplicação prática.
Se o governo não for cauteloso na implementação deste regime, corremos o sério risco de voltar aos problemas do regime de 2012 quando a tentativa de aplicar taxas diferenciadas a obras de reabilitação levou a anos de dúvidas, correcções e litígios fiscais.
O princípio é louvável; a execução, todavia, exigirá um trabalho legislativo e regulamentar muito mais profundo — sob pena de a taxa de 6% acabar por se revelar um incentivo teórico.
observador



