Mr. Scorsese a presidente: santos e pecadores

Presidenciais a caminho, outdoors, frases promocionais, nervos à flor da pele… Há muitas e boas formas de tentar compreender a vida política, mas e se transformássemos as tragicomédias da vida real em bons exercícios de imaginação? E se Marques Mendes, André Ventura e Henrique Gouveia e Melo fossem as personagens de um filme de Martin Scorsese? Nem a propósito, estreou dia 17 de outubro, na plataforma Apple TV, o documentário Mr. Scorsese, realizado pela norte-americana Rebecca Miller.
Não se compreende a política sem se compreender à fatalidade da vida e dos nossos desejos escondidos. É que a política é mesmo facilmente equiparável a um bom filme de gangsters. É preciso ser metódico, frio, calculista e racional nos momentos certos; mas também é preciso que nos corra nas veias um sangue quente capaz de ceder a impulsos e loucuras. É preciso fingir para o público, convencer as pessoas de que somos santos, é preciso camuflar as nossas arestas não limadas de pecadores.
Em Mr. Scorsese, não falamos apenas com e sobre o próprio. Em 5 episódios de 50 minutos cada, maravilhosamente realizados, somos obrigados a olhar para o abismo em que nos lançamos quando vivemos as nossas vidas. Homem de quase 83 anos de vida, meio século dedicado aos filmes, mas a verdade é que Scorsese não é apenas um realizador de filmes, é um contador de histórias, mas não das histórias como elas deviam ser ou de como elas passam a ser quando o perfume adulterado do tempo se impregna dentro delas. É sim um contador das histórias como elas são, sem aperfeiçoamentos. Travis Bickle em Taxi Driver, Rupert Pupkin n`O Rei da Comédia, Newland Archer n`A Idade da Inocência ou Henry Hill em Goodfellas são homens a quem a história não adocicou a narração dos factos. Scorsese não nega a realidade. Não nega que somos seres capazes de misericordiosos, mas para quem a misericórdia nem sempre tem valor nem palavra.
A também grande Isabella Rossellini, que foi casada com Scorsese durante um breve período durante a década de 80, descreve-o assim “Eu digo sempre que o Marty é um santo pecador, um santo peccatore”. Já Scorsese não esconde o seu fascínio pelas personagens a quem deu vida: são homens e mulheres cuja violência dos instintos não são embelezados para deleite moral do público. A certa altura do documentário, Martin Scorsese relata, com humor, que um dia, o realizador de Star Wars, George Lucas, lhe disse que se terminasse o filme Alice já não mora aqui com um final feliz arrecadaria pelo menos mais 10 milhões de dólares de lucro. Scorsese ri-se porque sabe que a vida não é assim e, mesmo sem querer, ainda nos dá uma lição de moral bastante invulgar — é que as lições de moral talvez sejam fantasias apenas para santos que vivem uma vida inteira a fingir que não têm dentro de si nada de pecadores.
A corrida presidencial não vai ser diferente, e que seria de nós se os candidatos que temos entre mãos não fossem, eles mesmos, “santos peccatores”. Mas de que teremos nós, tanto medo dentro de nós, que fingimos eternamente que os pecados só pertencem aos outros? Vai ser assim até janeiro. Marques Mendes, Ventura e o Almirante vão andar a acusar-se de pecados, negando sempre os seus, e investindo no que de mais santo têm dentro de si. Pelo meio, cada um vai acusando de pecados os grupos da sociedade que mais lhe convêm, enquanto santifica os outros todos que o podem levar à vitória.
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