Carlo Acutis: a vida do primeiro santo da geração millennial

Por essa razão, Carlo Acutis dedicou uma grande parte da sua vida à investigação e à divulgação dos milagres eucarísticos — acontecimentos inexplicáveis pela ciência e pela razão que envolvem, habitualmente, as espécies consagradas. Alguns dos mais conhecidos milagres eucarísticos envolvem relatos da transformação de hóstias consagradas em carne e sangue humanos. Nas palavras de Antonia Salzano, são milagres que servem para demonstrar a “presença real” de Deus na eucaristia — e não uma presença simbólica, como o pão e o vinho são entendidos na teologia protestante. Fascinado por estes acontecimentos sobrenaturais, Acutis dedicou-se a ler sobre eles, a investigá-los e a divulgá-los.
“Tenho 70 quilos e estou destinado a morrer.” Faltavam dois meses para Carlo Acutis morrer e nada indicava que esse seria o desfecho da curta vida do adolescente italiano — mas Acutis parecia já conhecer o seu destino quando se gravou a dizer aquelas palavras. Como escreve Ricardo Figueiredo no seu livro sobre Acutis, sempre que lhe pediam alguma coisa para o futuro, o jovem respondia: “Sim, se ainda estivermos vivos amanhã ou depois de amanhã, porque não posso assegurar-te quantos anos viveremos, porque o futuro só Deus conhece.”
Apesar da sua juventude, Carlo Acutis parecia não temer a morte, de acordo com os relatos dos seus pais. Por outro lado, preocupava-se profundamente com a possibilidade de morrer a qualquer momento e de qualquer dia da sua vida poder ser o último, uma vez que queria ter a alma sempre “imaculada e pronta para o encontro com Deus”. Por isso, dedicava todos os dias tempo para a missa, para a confissão e para a oração.
O fim da curta vida de Carlo Acutis precipitou-se rapidamente numa altura em que estava a dar especial atenção a Portugal para os seus estudos sobre os milagres eucarísticos. No verão de 2005, Acutis visitou Portugal com o objetivo de conhecer a igreja do milagre eucarístico de Santarém. O jovem queria conhecer melhor uma célebre história do século XIII para a incluir na sua documentação sobre os milagres eucarísticos. De acordo com a tradição, em 1266, uma mulher pobre de Santarém que era maltratada e traída pelo marido pediu ajuda a uma bruxa para parar de sofrer. A bruxa disse-lhe que seria capaz de remediar a situação, mas para isso necessitava de uma hóstia consagrada.
A mulher terá, então, ido à igreja de Santo Estêvão, em Santarém, para se confessar e receber a comunhão. Nesse momento, terá tirado discretamente a hóstia da boca para a levar, embrulhada no véu, para a bruxa. Porém, conta a história que, subitamente, começou a escorrer sangue do véu. A mulher correu para casa e fechou a hóstia numa arca. À noite, já com o marido em casa, os dois terão visto “misteriosos raios de luz” sair da arca — e passaram a noite em adoração perante a hóstia. O pároco local foi informado do estranho acontecimento e a hóstia milagrosa foi levada para a igreja e colocada numa custódia de cera. Quase um século mais tarde, a custódia foi encontrada totalmente desfeita — e a hóstia encontrava-se numa pequena âmbula de cristal, cuja origem era totalmente desconhecida. Essa âmbula ainda se encontra hoje em exposição numa custódia de prata dourada, naquela igreja.
A igreja de Santo Estêvão, atualmente rebatizada como Santuário do Santíssimo Milagre, tornar-se-ia um lugar de peregrinação pelo qual passaram figuras como a Rainha Santa Isabel ou o Rei D. Afonso VI.
Este era o tipo de histórias que fascinava Carlo Acutis. No verão de 2005, o jovem visitou aquela igreja e passou também por outros lugares de Portugal, como Lisboa, Alcobaça e, sem surpresas, Fátima. Mais tarde, Acutis debruçou-se também sobre o fenómeno de Fátima (que tem igualmente uma dimensão de milagre eucarístico com a aparição do anjo no ano de 1916). Segundo o padre Ricardo Figueiredo, Carlo Acutis dedicou o verão de 2006 à leitura das Memórias da Irmã Lúcia, concretamente durante uma viagem que fez a Lourdes com a família.

▲ Carlo Acutis em Fátima, cerca de um ano antes da sua morte
Associação dos Amigos de Carlo Acutis
Foi no final desse verão que Acutis começou a ter “alguns sinais estranhos de saúde”, recorda o sacerdote. Segundo a mãe, a doença foi inicialmente disfarçada pelos sintomas de gripe: era outubro e a maioria dos colegas de escola de Carlo Acutis tinham tosse e outros sintomas semelhantes. A família não valorizou o que se passava até ao dia em que Carlo “acordou e não se conseguia mexer”. Os pais levaram-no para o hospital e, à entrada, Acutis declarou: “Não vou sair vivo deste hospital.”
No início de outubro, foi diagnosticado com uma leucemia fulminante. Morreu no espaço de uma semana. Durante esses dias de profundo sofrimento, quando lhe perguntavam se estava a sofrer, respondia que “há pessoas a sofrer mais”, recorda a mãe. Levado de urgência para uma unidade de cuidados intensivos, repetiu aos pais que oferecia o seu sofrimento “pela Igreja e pelo Papa, para não ir para o Purgatório e ir diretamente para o Céu”, lembra o padre Ricardo Figueiredo. No final da vida, conta-se que terá dito: “Estou contente por morrer, porque na minha vida não estraguei nem um instante em coisas que não agradassem a Deus.”
Carlo Acutis morreu na madrugada de 12 de outubro de 2006, aos 15 anos de idade. De acordo com o desejo do próprio, foi enterrado em Assis, cidade que Acutis, devoto de São Francisco, amava e onde passava habitualmente parte das suas férias. Rapidamente, começou a correr no norte de Itália a ideia de que estava ali um futuro santo. “Os primeiros milagres do Carlo aconteceram no funeral dele”, contou a mãe. “Havia uma mulher que tinha cancro da mama. Já tinha feito o exame histológico e disseram-lhe que iria precisar de começar a quimioterapia em breve. Ela rezou ao Carlo no dia da missa do funeral e o tumor desapareceu.”
A fama de santidade em torno de Carlo Acutis começou a crescer, “inicialmente muito circunscrita à zona de Milão”, lembra Ricardo Figueiredo. Depois, a devoção ao jovem italiano foi-se internacionalizando — até que se tornou inevitável que a Igreja Católica avançasse com o processo destinado a investigar se havia ou não condições para o considerar santo. Como explica Ricardo Figueiredo, foi necessário esperar os cinco anos habituais após a morte para que o processo fosse aberto — e, em 2018, o Vaticano deu o primeiro passo rumo à canonização de Acutis, ao avançar com a declaração de virtudes heroicas do jovem italiano. Isto é, a declaração de que Acutis viveu de forma extraordinária as virtudes da fé cristã. Este processo envolveu a auscultação de familiares, amigos, colegas de turma e outras pessoas que conheceram Carlo Acutis e que testemunharam sobre o modo como o jovem os aproximou da fé cristã.
A partir daí, diz o sacerdote, foi o “grande boom da divulgação da vida dele”. O nome de Carlo Acutis tornou-se em poucos anos um símbolo da juventude católica por todo o mundo, ganhando especial destaque na Jornada Mundial da Juventude — foi padroeiro, por exemplo, da edição de 2023, em Lisboa — e tornando-se numa espécie de “santo sensação”, nas palavras de Ricardo Figueiredo, contribuindo decisivamente para impulsionar a relação da Igreja Católica com os jovens de hoje.
“Se andarmos 100 anos para trás, vemos que o grande santo sensação era Santa Teresinha do Menino Jesus. Há várias igrejas com imagens dela. Tinha a linguagem necessária para aquele tempo, para as transformações sociais da transição do século XIX para o século XX”, recorda Ricardo Figueiredo, sublinhando que houve uma “reação espiritual” a essas transformações com o jansenismo e com o “fechar os bastiões da Igreja”, colocando “um peso e uma carga moral sobre o Catolicismo, que tornava a salvação muito distante”. Em contrapartida, Santa Teresa “falava da infância espiritual”, dizendo que os fiéis se deveriam “abandonar nos braços de Deus como uma criança se abandona nas mãos dos pais”.
Da mesma forma, “Carlo Acutis surge num tempo marcado pelo materialismo, pelo mundo digital, em que parece tão difícil ser santo, e torna-se o santo sensação”.
Ao longo dos anos que se seguiram à declaração das virtudes heroicas, a causa de beatificação de Carlo Acutis avançou para a fase seguinte: a investigação de eventuais milagres atribuídos à intercessão do jovem italiano, condição necessária para a beatificação e a canonização de um santo.
observador