O inferno de Gaza

É de engolir em seco. Tudo aquilo que nos chega da Faixa de Gaza deixa-me pouco espaço para escrever sobre outra coisa. As imagens são insuportáveis, mas os relatos obrigam a que não os esqueçamos. Na entrevista que deu, as afirmações do embaixador israelita em Portugal a negar aquilo que referem todas as organizações no terreno e mais entidades credíveis fora dele sobre a fome que se vive não se tornam apenas um atentado ao mínimo da decência. São grotescas quando se sabe que mais de 18 000 crianças já morreram ali e estas palavras do embaixador deveriam, no mínimo, merecer reprimenda ou, no máximo, ordem de partida.
Longe vai ou está esse Portugal. Essa Europa. Sem voz nem memória histórica num mundo “gerido hoje por psicopatas desta maneira” como tão bem disse Lídia Jorge numa entrevista de enorme lucidez e até luminosidade na edição anterior desta revista.
No entanto, é aqui que estamos e não conseguimos fugir à realidade do que ali se passa. É indesmentível que a ideia do inferno de Gaza começou a desenhar-se depois do ataque terrorista do dia 7 de outubro de 2023 em que mulheres, homens, famílias inocentes de milhares de israelitas foram cobardemente assassinadas e torturadas pelo Hamas.
A armadilha prolongada da Faixa de Gaza veio a seguir.
O direito de resposta de Israel justificava-se, o apoio sem reservas ao governo extremista de Netanyahu, depois de 15 anos a minar o terreno, nunca poderia ter sido dado. Escrevi-o na altura.
A solução de reconhecer o Estado da Palestina deveria ter estado logo em cima da mesa. Por uma simples e óbvia razão: tudo o que se passa hoje em Gaza, todo este genocídio israelita sem fim, responde aos interesses tanto dos terroristas do Hamas como do governo criminoso de Netanyahu.
Só os palestinianos com o seu sofrimento, quando não com as suas vidas, os reféns israelitas e a Autoridade Nacional Palestiniana no seu poder e na sua luta, são as grandes vítimas externas hoje e ontem. A partir daqui, torna-se evidente que, apesar de vir tarde ou de efeito incerto, o reconhecimento do Estado palestiniano é um passo pequeno, mas que se tornou imperativo. Com todos os requisitos cumpridos.
Se não se desse este sinal de 150 países, o não reconhecer significaria garantir o projeto colonial que Israel com a liderança de Netanyahu pretende na Palestina.
Seja como for, a União Europeia não se livrará dos efeitos de ter caído na armadilha. No mundo como está, uma Europa que se mostra com tanto medo das consequências na defesa do essencial ou tão descaradamente titubeante entre sanções a uns e palavreado inconsequente a outros, hipoteca ainda mais o seu próprio futuro geopolítico e soft power. E não, contrariamente a algum novo whataboutism que aterrou na direita advindo da esquerda, todos os outros genocídios ou conflitos que não respeitam o direito internacional não merecem que o velho continente os ignore ou que seja seletivo em relação aos que escolhe. Um bocadinho de mundividência, noção histórica e não só é que deve fazer entender porque é que este na forma e no modo nos toca diretamente e nos diz tanto respeito.
Regresso ao mais relevante, através de uma passagem no livro Se Isto é um Homem, do Primo Levi, que li há uns tempos: “Não temos regresso. Ninguém deve sair daqui, pois poderia levar para o mundo, juntamente com a marca gravada na carne, a terrível notícia do que em Auschwitz o homem teve coragem de fazer ao homem.”
Reformulo apenas a parte final: o que o homem teve coragem de fazer ao homem, à mulher e à criança.
Se isto é Gaza?
Visao