Droga: como Portugal caiu do 80 para o 8

O chamado “modelo português” de prevenção, combate e tratamento da toxicodependência já foi, um dia, um êxito, e alvo de rasgados elogios internacionais. Começou em 1987 com a criação de um centro-piloto de atendimento e tratamento de toxicodependentes, o das Taipas, em Lisboa, dotado de meios humanos e técnicos para dar resposta a muitas das necessidades, mas que, sendo o único, rapidamente ficou lotado, com pessoas vindas de todo o País. Estava-se numa epidemia que, nos anos seguintes, chegaria a uma população de 100 mil heroinómanos.
Perante tal catástrofe, houve ação do poder político. Em 1997 foi criado o Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência, a primeira grande estrutura a nível nacional. Entretanto, até àquele ano, nasceu uma rede de 16 centros de atendimento a toxicodependentes, espalhados pelo País, com dimensão para dar resposta à maioria dos que os procuravam. Como substituição da heroína, generalizou-se a distribuição de metadona, substância que permitia que as pessoas se tornassem funcionais, capazes de trabalhar e de ter uma vida familiar.
Até que, em 1998, aconteceu o que parecia impossível: o desmantelamento do hipermercado de tráfico e consumo de droga instalado no bairro lisboeta do Casal Ventoso. O feito deve-se ao então presidente da Câmara, João Soares, que se articulou com José Sócrates, à época ministro-adjunto do chefe do Governo, António Guterres, e com o serviço especializado dirigido pelo psiquiatra João Goulão. Não se tratou de uma varredura de pessoas, mas antes de uma intervenção bem-sucedida e exemplar. Foi criado um centro de abrigo de emergência, com cuidados médicos, alimentação e distribuição de metadona, e as necessidades das pessoas afetadas tiveram resposta. [Apesar dos pesares, faça-se justiça a Sócrates, neste caso.]
Por fim, em 1999, uma comissão de especialistas elaborou a primeira Estratégia Nacional de Combate à Droga. A comissão terminou os seus trabalhos destacando dois pressupostos – o de que mais vale tratar do que punir e o de que vale ainda mais prevenir do que tratar, para lá de considerar a dependência como uma doença e de alertar para o respeito pela dignidade humana em quaisquer circunstâncias. Como passo lógico, Portugal foi, em 2001, o primeiro país do mundo a descriminalizar o consumo. As orientações daquela comissão guiaram todas as intervenções a partir daí, e o certo é que, em 2006, um projeto de abertura, em Lisboa, de uma sala de consumo assistido seria cancelado, porque se tinha conseguido inverter de forma muito significativa o uso de drogas por via injetada.
Mas seguiram-se erros políticos grosseiros de sucessivos governos, que desinvestiram brutalmente numa estrutura já bem oleada, arruinando o “modelo português” internacionalmente tão elogiado. Exemplos: o quadro do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) passou, a nível nacional, de 1 400 trabalhadores para apenas 80. Não houve renovação nem reforço da rede dos centros de atendimento a toxicodependentes. Programas fundamentais, como o “Vida Emprego”, de reintegração de toxicodependentes em recuperação na sociedade, desapareceram.
Tudo isto paga-se hoje caro, com respostas claramente insuficientes – e quando emerge uma nova epidemia de droga, com maior dimensão e ainda mais perigosa do que a dos anos 1980/90. “Nunca houve tanta gente a utilizar drogas. Nunca houve tantas substâncias e tão potentes em circulação”, alertou há dias João Goulão, agora presidente do ICAD-Instituto para os Comportamentos Aditivos e Dependências (sucessor do IDT), num debate realizado na Assembleia Municipal de Lisboa. Nessa sessão, promovida pelo PCP para escutar associações que estão no terreno e fazer um retrato da toxicodependência na capital, João Goulão, considerado o arquiteto da estratégia que deu reconhecimento mundial ao nosso País (até Barack Obama, como presidente dos EUA, a elogiou), acrescentou que “o poder político, talvez deslumbrado pelo êxito do chamado ‘modelo português’”, convenceu-se de que “estava tudo resolvido, de que estava tudo muito bem e de que podíamos desinvestir seguramente”.
Agora, os técnicos das associações presentes no referido debate retratam uma cidade com mais consumos, mais recaídas, pessoas em situações mais precárias e falta de respostas. As consequências são fáceis de adivinhar. No passado dia 7, o Público fez manchete com uma reportagem cujo título diz tudo: “Droga está ‘fora de controlo’ na Mouraria. Já há quem contrate segurança particular.”
Mas o mais assustador é que o discurso dos responsáveis políticos e governamentais ignora este problema, que se agiganta a cada dia que passa, preferindo o foco da moda, que nada resolve e tudo agrava – securitário e visando os migrantes. Enquanto é visível o retrocesso de voltar a considerar o toxicodependente como um criminoso e não como um doente, as associações que estão no terreno pedem o regresso à estratégia de há duas décadas, com as devidas adaptações, para enfrentar a nova epidemia da droga. Será que o Governo apenas acordará para este tremendo problema quando se souber, como aconteceu nos anos 1990, que por dia morre uma pessoa em Portugal por overdose?
Visao