A glória de Lisboa que se perdeu no Elevador

Lisboa acordou com uma ferida profunda. O Elevador da Glória, símbolo da cidade e da sua história, descarrilou, provocando a morte de 17 pessoas e deixando cerca de duas dezenas de feridos, alguns em estado grave. Um acidente que nos deixa a todos sem palavras e que já entrou, infelizmente, para as páginas mais negras da capital.
O Elevador da Glória não era apenas um meio de transporte. Faz parte da identidade de Lisboa, da sua paisagem urbana, da memória de várias gerações. Subir ou descer aquela colina no funicular que liga a Praça dos Restauradores ao Bairro Alto era uma experiência quase iniciática, tanto para quem vive na cidade como para quem a visita. Eu próprio andei ali muitas vezes, sobretudo quando recebia amigos vindos do resto da Europa. Mostrar-lhes a vista do Miradouro de São Pedro de Alcântara depois daquela curta viagem era uma forma de lhes revelar, em poucos minutos, o espírito de Lisboa: tradição e modernidade de mãos dadas, a vida quotidiana e o encanto turístico a partilharem o mesmo espaço.
Hoje, essa memória está manchada por um acidente brutal, que ainda não se sabe explicar em toda a sua dimensão. Fala-se de um cabo que terá rebentado, de falhas técnicas, de circunstâncias imprevistas. Mas o que sabemos já é suficiente: vidas perderam-se. Famílias ficaram destruídas. E uma cidade inteira ficou abalada.
Perante tamanha tragédia, impõe-se o luto e o respeito. Estamos num período pré-eleitoral, é verdade. Mas não pode haver aproveitamento político de um acontecimento assim. Seria um insulto à dor das famílias e ao sofrimento dos feridos. O debate político deve ser travado com clareza e intensidade, mas não à boleia de uma catástrofe. A memória das vítimas exige contenção e dignidade.
Ainda assim, não se pode calar a exigência de responsabilidades. Não se trata de procurar bodes expiatórios, mas de garantir que este desastre não se repete. O Elevador da Glória, como outros equipamentos históricos, exige manutenção rigorosa, fiscalização permanente, cuidado redobrado. Não basta garantir que há protocolos em vigor, é preciso ter a certeza de que esses protocolos são cumpridos à risca e que a segurança de quem sobe e desce diariamente aqueles carris nunca é posta em causa.
Lisboa e o país não podem viver de improvisos. Quantas vezes nos habituámos a ver falhas em serviços públicos, pequenas ou grandes, sempre relativizadas, sempre adiadas? Mas quando se fala de transportes colectivos, quando vidas estão em jogo, não há margem para complacências. Um acidente desta magnitude prova, de forma trágica, que a segurança tem de estar sempre em primeiro lugar.
O impacto da tragédia já atravessou fronteiras. Lisboa é uma cidade visitada por milhões de turistas e o Elevador da Glória é um dos postais ilustrados que percorrem o mundo. A imagem de um dos seus ícones transformado em destroços é uma dor colectiva que se espalha para lá das fronteiras portuguesas. Mas a dor maior está, obviamente, nas famílias que perderam os seus. E é nelas que devemos pensar antes de qualquer outra consideração.
É difícil aceitar que uma viagem de poucos minutos, destinada a aproximar pessoas da cidade, possa ter terminado em morte. É difícil imaginar que, na Calçada da Glória, onde tantas vezes se ouviu o ranger metálico das carruagens como banda sonora de Lisboa, o som de ontem tenha sido de sirenes, de gritos, de desespero.
O futuro dirá quem falhou, onde falhou, porque falhou. Mas esse futuro tem de ser construído com transparência e rigor. O inquérito aberto não pode ser mais um processo burocrático. Deve ser um compromisso com a verdade e com a memória das vítimas.
O Elevador da Glória voltará, um dia, a subir e a descer a colina. Voltará porque a cidade precisa dele, porque é parte do seu coração. Mas quando voltar, terá de regressar com garantias de segurança absolutas. Lisboa não pode permitir-se nova ferida como esta. Neste momento, mais do que estatísticas ou análises técnicas, o que importa é lamentar a perda de vidas humanas. Dezassete pessoas que tinham famílias, amigos, rotinas, sonhos. Dezassete vidas que não regressarão e cuja ausência deixará marcas irreparáveis.
Hoje, Lisboa chora. E no meio do choro, exige responsabilidade. Para que o Elevador da Glória não seja lembrado apenas como palco de uma tragédia, mas também como ponto de viragem: o momento em que se percebeu, de forma dolorosa, que a segurança colectiva tem de estar sempre acima de qualquer desculpa ou atraso.
Escreve no SAPO quinzenalmente à quinta-feira // Tiago Matos Gomes escreve com o antigo acordo ortográfico
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