‘Caderno de encargos da TAP serve mais para a batalha nacional entre partidos’

Numa altura em que estamos prestes a conhecer o caderno de encargos para privatização parcial da TAP, o especialista em aviação Pedro Castro faz uma análise de como pode correr este negócio e o que o Estado fez bem ou mal neste processo. Fala ainda da Portela – que diz que o Governo quer desacreditar – e sobre o novo aeroporto.
Como vê o processo de privatização de 49,9% da TAP?Para o investidor privado, o que está previsto nesta fase são 44.9%, uma participação minoritária. Eu acredito que o investidor privado irá dar uma avaliação muito negativa a esta escolha por vários motivos, dos quais destaco: 1) a falta de coordenação e de vontade partidária para uma privatização total que fica totalmente suspensa ‘no ar’; 2) o elevado risco inerente à partilha desta empresa com este Estado, porque a TAP é um joguete eleitoral nas mãos de sindicatos e de partidos; 3) pelo tipo de governança que está em cima da mesa – com este Estado populista e eleitoralista a gozar de uma força de bloqueio no Conselho de Administração, este Estado que temos não hesitará em secundarizar os aspetos económicos e financeiros relativamente às manobras e maroscas políticas que sejam do seu próprio e exclusivo interesse, utilizando sempre um ‘chavão’ mediaticamente manipulador e de difícil refutação representado por esse alçapão do ‘interesse nacional estratégico’. A estratégia de vender apenas 44,9% ao privado maximiza o risco de continuarmos a ter uma companhia ingovernável e um acionista minoritário preso a uma relação tóxica com o seu ‘parceiro’ maioritário que mudará de opinião de cada vez que muda a cor política do governo. Quem afirmou isso mesmo foi Fernando Medina num artigo de opinião em que reconheceu com clareza: «Se há lição que podemos retirar do período de privatização parcial da TAP em 2015 até à sua completa nacionalização, é a de que a convivência entre operadores privados e públicos tem tudo para funcionar mal». Pena estarmos a repetir os erros.
O que pode correr mal?Nada pode correr terrivelmente mal, porque o Governo já disse ao que vem: ‘Se não gostarmos das propostas, cancelamos e não há indemnização para ninguém’. Esta posição tem dois efeitos: 1) pode afastar potenciais investidores, que, depois de avaliarem o caderno de encargos, prefiram colocar os recursos necessários para elaborar uma proposta de aquisição da TAP noutros projetos com maior potencial de se concretizarem; 2) aumenta o risco de litigância – se o Estado acha que pode cancelar tudo com base numa razão subjetiva qualquer sem haver contestação, pode estar enganado. Para além do risco do Governo cancelar a privatização por sua decisão unilateral, esta alienação pode também ficar deserta; ou serem apresentadas poucas propostas por relação ao número de interessados; ou serem apresentadas propostas com valores muito baixos – e isto poderá não ter nada a ver com o valor do negócio aéreo da TAP em si, mas sim com o formato escolhido para a sua venda pelo Governo. O caso concreto da alienação de 25% da empresa privada Air Europa que está a decorrer em paralelo pode servir de bússula: um dos interessados – o IAG – foi bloqueado por Bruxelas devido à elevada concentração de negócio que isso representaria, sobretudo em Madrid; os outros dois interessados – o grupo Air France/KLM e o Lufthansa Group – desistiram da corrida e não apresentaram nenhuma oferta. Ambos os grupos estão muito ocupados com as suas recentes aquisições – SAS e ITA Airways/Air Baltic, respetivamente. No final, sobrou apenas a Turkish Airlines que submeteu a única oferta vinculativa – é muito pouco.
Estes avanços e recuos dos últimos anos tiram alguma credibilidade à empresa considerada de bandeira?À empresa TAP em si, não. Tira credibilidade ao vendedor da empresa – são coisas bem diferentes. O nosso Estado é muito frágil e incipiente e é por isso que ainda tem de recorrer a princípios terceiro-mundistas baseados no exercício da sua força política/partidária para se impor. Isso é notório em múltiplos aspetos da nossa economia, no da aviação talvez seja mais flagrante por ser um negócio tão aberto, evoluído e concorrencial em que esse tipo de controlo público já faz parte do passado – até na Grécia e na Itália, as companhias icónicas já são museu, sem que daí tenham resultado perdas para alguém…pelo contrário! A Irlanda que, caricaturando, é um país sem sol, caro, com má comida e sem turismo, deu à Europa uma das empresas aéreas privadas mais expansionista e mais rentável do mundo. Nesse mesmo espaço de tempo e nas mesmas condições de mercado, o que alcançou o Estado português?! É acionista único de quatro companhias aéreas e todas elas são um ‘poço sem fundo’, usando a expressão do primeiro-ministro para descrever ao mundo a empresa que estamos a tentar vender nesta terceira década do século XXI. O que tira a credibilidade é esta impressão de estarmos perante um Estado muito primitivo e um país que não se governa, nem se deixa governar.
Continuamos à espera do caderno de encargos. O que se pode esperar daqui?Estou à espera que este documento seja altamente político e que sirva, sobretudo, para satisfazer o debate parlamentar com uma maioria de partidos esmagadoramente radicais e arcaicos sobre este assunto. Será um documento que serve mais para a batalha nacional – entre partidos, no Parlamento, nas redes sociais e na comunicação social – e menos para sustentar uma privatização séria e tecnicamente racional. Espero uma redação que revela preocupações com a narrativa doméstica e eleitoral e que esquece totalmente os investidores – os verdadeiros destinatários desta operação. Legalmente, acredito que o documento irá conter imposições que chocam com o Direito Europeu, nomeadamente a imposição da sede da empresa em território nacional, contrariando o princípio do livre estabelecimento. O Tribunal de Justiça da União Europeia já se pronunciou sobre esta mesma questão, em 2021, no contexto da TAP. Esta imposição será concretizada nestes termos, mas por outra via: estará subjacente à maioria acionista bloqueadora do Estado e não àquilo que diz o caderno de encargos sobre isso. Portugal insiste neste tipo de fórmulas antigas e impositivas para se manter atrativo e isso é uma admissão plena do nosso fracasso na União Europeia, como aliás confirmam as estatísticas. De facto, Portugal não é um país interessante para se manter sede de nada – nem da Jerónimo Martins, nem dos unicórnios – porque ignoramos as novas regras de um jogo que já deveríamos dominar 40 anos depois da adesão à UE. Malta, que só aderiu em 2004, entendeu mais depressa: é hoje um polo de atração para registos de aeronaves e sedes de empresas de leasing de aviões. Portugal, por sua vez, continua a depender da força do capital público para garantir o que devia ser conseguido por competitividade e atratividade. Aeronauticamente falando, este caderno de encargos incluirá também uma limitação importante: impõe o modelo de hub, como se isso fosse panaceia. Num mundo que caminha para a descarbonização, a preferência pelo ponto-a-ponto e pela eficiência operacional, querer que Lisboa funcione como entreposto de trocas entre voos é, no mínimo, discutível. Não serve o país como um todo, não serve o passageiro que tem Portugal como destino ou como origem e não serve, sobretudo, a própria TAP. Já os temas de verdadeira governança ou como a imposição de um preço mínimo para a venda parcial da ‘TAP boa’ – surgirão mal tratados ou simplesmente omitidos. Por fim, este caderno servirá como um mero guião formal para marcar o tiro da verdadeira partida. Os investidores interessados querem ter acesso à informação crítica da empresa, aos compromissos assumidos, à realidade financeira escondida por detrás da cortina, o que apenas será possível a partir do momento em que todos os passos formais do vendedor estejam cá fora, incluindo este último passo do caderno de encargos.
Ainda há dúvidas por esclarecer neste processo de reprivatização?A maior dúvida está relacionada com os ‘remédios’ de Bruxelas e das autoridades da concorrência de outras jurisdições que sejam chamadas para validar esta compra – não temos como saber o que será prescrito porque isso vai depender do caso concreto e de qual a situação concreta da consolidação desse grupo no panorama europeu e mundial. Essa dúvida tem prazos muito dilatados para o seu esclarecimento (o que, desde já, compromete o fecho do calendário desejado para a transação) e nunca será o Governo português a esclarecer estes aspetos até porque ultrapassa as suas competências. E ainda bem que assim é porque seriamos péssimos juízes em causa própria. A dimensão dos remédios poderá facilmente tornar este negócio menos interessante para o investidor e é por isso que é tão importante estarmos atentos a esta última fase do processo, partindo do pressuposto de que haverá ofertas vinculativas, claro.
Em relação aos grupos interessados. Há algum que seria melhor para Portugal ou estarão todos no mesmo pé de igualdade?O melhor para Portugal seria termos um Estado que prossiga uma política pública de mobilidade e de transportes que considere todo o território – Continente e Ilhas – e todos os meios – terrestres, marítimos e aéreos. Infelizmente, não temos: temos um Estado que, em vez de pensar em política pública dos transportes e da mobilidade, atua no mercado com empresas próprias e que prestam um mau serviço, destorcem as regras de mercado e não servem o interesse público geral – servem interesses particulares, alimentam um clientelismo político-partidário e aquecem uns debates filosóficos parlamentares estéreis e sem efeitos práticos. De resto, todos os grupos potencialmente interessados na TAP farão este investimento massivo e arriscado com o mesmo objetivo: aumentar as margens de lucro e maximizar o retorno do seu investimento seja ao nível das receitas, seja ao nível das sinergias dos custos. Na estratégia concreta, cada um terá um jeito diferente de o fazer, mas o destino final é igual para todos.
O futuro comprador da TAP ficará com a gestão da companhia aérea, no entanto, cabe ao Estado nomear administradores para o conselho de administração e ter uma palavra a dizer quanto às decisões estratégicas. Como vê esta gestão?Não sei que privado aceitará isso: quem compra e quem investe a este nível e nesta dimensão quer mandar, quer ter a perspetiva de mandar e, certamente, não quer ter politiquices à mistura. Sem um prazo concreto para esse tipo de gestão complicada terminar e sem garantias de um dia o país ser governado por pessoas minimamente razoáveis, não sei que privado quererá correr este risco.
Agora que Marcelo Rebelo de Sousa autorizou a reprivatização, o que podemos esperar daqui para a frente?Da parte do Presidente, o que eu espero é que se cale sobre esta matéria e que não surjam mais histórias ao estilo daquela revelada na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o pedido de mudança do voo Maputo-Lisboa para coincidir com a sua agenda e que deixou um gosto amargo para qualquer gestor aeronáutico. É mais um terceiro-mundismo totalmente indesejável e que espero nunca mais se reproduza, nem sequer como anedota.
Já chegou a dizer que ‘quando se diz que a TAP não é relevante para o resto do país, é verdade’. Porquê?A TAP representa 16 dos 70 milhões de passageiros dos nossos aeroportos. A maior parte desses passageiros diz respeito a voos de e para Lisboa. Cerca de cinco milhões desses passageiros da TAP estão em Lisboa por acaso: apenas trocam de avião. A importância da TAP está toda baseada neste eixo lisboeta e isso é o resultado direto do modelo de negócio que se escolheu, o do hub na Portela. A consequência dessa escolha é mesmo essa: para o resto do país, a TAP não conta; e em Lisboa a sua relevância é substituível. Como é conhecido, a Portela tem uma lista de espera de companhias que querem voar, mas que não conseguem porque a TAP ocupa 50% das faixas horárias disponíveis… imaginemos que esse obstáculo desaparecia um dia. O exemplo mais radical relativamente ao resto do país é o aeroporto de Faro, a porta de entrada para a região com mais turismo internacional do país. Ora bem, a TAP transporta apenas 300 mil dos 10 milhões de passageiros que passam por Faro – a relevância da TAP para o setor do turismo, o motor económico do Algarve, é totalmente negligente. No Funchal, das mais de 100 rotas, apenas duas são realizadas pela TAP – com outras duas operadas de forma muito sazonal. Já no Porto, a TAP aparece num distante terceiro lugar. É esta a realidade dos números, que contrasta radicalmente com a conversa e a lenga-lenga dos políticos.
Em relação ao novo aeroporto: sempre defendeu que não era preciso mais um. Porquê?O aeroporto de Lisboa não pode ser visto de forma isolada e esse foi o erro mais trágico da Comissão Técnica (In)dependente. O aeroporto de Lisboa tem de ser visto na perspetiva dos vários aeroportos do país (Continente e Ilhas) que, à medida que vão vendo a sua conetividade cada vez mais desenvolvida com voos e rotas diretas para mais destinos, passam a depender menos da necessidade de voar ‘via’ Lisboa como era antigamente nos primórdios da aviação; o transporte aéreo também deve ser avaliado à luz da evolução dos transportes. Por exemplo, o número de voos de Londres para Bruxelas e de Londres para Paris decresceu brutalmente ao longo dos anos por causa do Eurostar. Não há nenhuma lei que proíba estes voos, é o mercado a escolher os meios mais eficazes e mais produtivos para se chegar de A a B. Em aeroportos congestionados esta conversão de tráfego para outros meios é essencial e até é estimulada pelas companhias aéreas – a Air France já não tem voos entre Paris e Bruxelas, coloca o seu código de voo no TGV; a Austrian Airlines faz o mesmo nas ligações Viena-Salzburgo; nos Estados Unidos e na Finlândia faz-se isso com autocarros. Temos também de imaginar o que será a mobilidade nas próximas décadas. Estou convencido que vamos olhar para este ritual de horas perdidas em aeroportos e aviões da mesma forma como olhariamos hoje se alguém dissesse que vai ia mandar um fax de trabalho em vez de enviar um email.
É a tal vontade de desacreditar a Portela?Essa é a única forma de vender um projeto desta envergadura, em que muita gente próxima dos decisores políticos vai ganhar muito dinheiro – imagine os milhares de contratos de todo o tipo, os acessos terrestres, as compensações aos militares e até a criação de uma nova cidade aeroportuária de raíz. Isto desafia toda e qualquer lógica: não é possível que, no estado em que o país está – desde logo na habitação, na ferrovia ou na pobreza do alcance do Metro de Lisboa, que não chega onde as pessoas vivem e isto apenas para citar pastas deste mesmo Ministério das Infraestruturas -, a grande preocupação nacional seja o aeroporto de uma das suas cidades (Lisboa) e ainda por cima nem sequer é numa perspetiva de servir a população local – é por causa do hub, de conseguirmos ter um dia 50 milhões de passageiros/anuais a trocar de avião entre a Europa e o Brasil, numa espécie de revanchismo colonial e de concorrência tordesilhana com Madrid.
Como vê as obras na Portela?Em primeiro lugar, deveriam incluir uma compensação regulamentar para a população: em troca do aumento da capacidade, a garantia de execução de uma proibição total de voos (aterragens e descolagens) entre a meia-noite e as 6h da manhã. É o que acontece em vários hubs europeus, como Frankfurt ou Zurique. Em segundo lugar, um incentivo mais claro à utilização de aviões de grande porte: a maior parte das companhias pode escolher usar aviões entre 100 a 300 lugares. Quanto maiores os aviões, menor o número de voos, o que contribuiu para equilibrar a movimentação nas restantes horas do dia. De resto, algumas das obras anunciadas são ajustadas à real dimensão do país, à atual distribuição dos passageiros pelos vários aeroportos e aquela que é recomendável para o futuro, mas já vêm tarde. Demasiado tarde. Por outro lado, faltam obras que seriam necessárias e de que ninguém fala porque são menos ‘sexy’, como as que dizem respeito ao terminal de carga ou ao sistema de abastecimento de jetfuel. Tudo isto é consequência direta dos decisores terem deixado o concessionário totalmente à toa e ao sabor do vento político-partidário sobre o novo aeroporto de Lisboa: era para ser aqui, depois ali e agora acolá e agora é um, mas depois já são dois e afinal talvez sejam três, numa total cacofonia governativa. Resultado: sem saber qual o horizonte do retorno do investimento na Portela, sem obter as autorizações governamentais devidas por pura sabotagem partidária e sem qualquer perspetiva de longo prazo, a ANA-Vinci apenas foi remendando, aqui e ali, o estritamente necessário. O que temos hoje na Portela não resulta da vontade do concessionário ANA-VINCI de não querer gastar dinheiro, resulta, sim, do nosso Estado ser um péssimo concedente, que cumpre muito mal as suas funções. Se eu fosse a ANA-Vinci teria feito exatamente o mesmo, ainda que correndo o risco de ser falsamente acusado como ‘culpado’ na comunicação social. O maior culpado é mesmo o nosso Estado incompetente.
Jornal Sol