Sobreviver não é viver: Mulheres trans no limbo judicial em Coahuila

Grecia foi esfaqueada em janeiro dentro de uma casa no centro de Torreón. O fato de seu inquérito não avançar, de seu agressor continuar foragido e de as próprias autoridades ignorarem sua queixa demonstra que as barreiras não são apenas legais, mas também profundamente estruturais.
Uma sensação de formigamento invadiu seu braço esquerdo, ele sentiu calor, mas também um frio imenso ao perceber que seu amigo estava inserindo uma faca em seu corpo.
Ele recebeu seis facadas: cinco no braço e uma no estômago.
“Por que você fez isso, Edy?” ele conseguiu perguntar ao seu agressor antes de fugir.
Grecia Zúñiga Velazco, uma mulher trans de 32 anos, foi atacada no início de janeiro dentro de uma casa no centro de Torreón. Sua história não chegou às redes sociais nem virou manchete, e ela trilhou seu caminho até a justiça praticamente sozinha, enfrentando instituições que carecem de perspectiva de gênero e protocolos precisos para lidar com casos como o dela.
Vinte e cinco dias após o ataque, quando conseguiu sair da cama, Grecia foi à Procuradoria-Geral do Estado de Coahuila para denunciar a agressão sofrida. Lá, sugeriram que ela fosse ao Centro de Justiça e Empoderamento da Mulher em Torreón; ela foi, mas lá lhe disseram que seu caso não seria levado para lá e que seria melhor devolvê-lo à Procuradoria-Geral.
"Então, o que eu sou? Um homem, uma mulher ou uma marciana? Vou para outro planeta? Ou: 'Quando é que vão me apoiar como cidadã?'", ela se lembra de ter perguntado, indignada.
Grecia relata o que lhe aconteceu: foi uma tentativa de transfeminicídio. Um crime que, embora ocorra, não está previsto no Código Penal de Coahuila.
Atualmente, apenas Nayarit e a Cidade do México o tornaram um crime independente. Embora a Suprema Corte e a Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH) tenham estabelecido que os assassinatos de mulheres trans devem ser investigados como feminicídio, a classificação específica ainda não é obrigatória nos outros 30 estados.
Em novembro de 2022, a deputada Lizbeth Ogazón (Morena) apresentou um projeto de lei no Congresso do Estado de Coahuila para adicionar o Artigo 188 bis, com penas que variam de 35 a 70 anos, o que consideraria o assassinato de mulheres trans (ou pessoas dentro do espectro feminino) um crime de ódio. No entanto, até o momento, o projeto não foi aprovado.
Isso é urgente porque, segundo Grecia, a violência contra mulheres trans ocorre com frequência, embora, segundo ela, seja invisível.
O ATAQUEZúñiga Velazco contou a este jornal que seu "amigo" chegou à sua casa no dia 1º de janeiro. Embora não o esperasse, ela o recebeu e pediu que a esperasse enquanto se arrumava para poderem sair para festejar.
Depois de ir a dois bares, ela lhe disse que precisava trabalhar para "pagar o aluguel". Como muitas mulheres trans, Grecia se dedica ao trabalho sexual, uma realidade comum devido à exclusão estrutural que enfrentam.
Mas naquela manhã, 2 de janeiro, Grecia não saiu às ruas. O homem a convenceu a não trabalhar. "Ele me disse que me daria o dinheiro, e fomos até a casa dele."
Momentos depois de chegar em casa, ocorreu o ataque. "Graças a Deus, eu tinha a porta aberta." Por algum motivo, o amigo trancava a porta e escondia as chaves sempre que chegava em casa, mas não foi o que aconteceu naquele dia.
"Abri a porta e saí correndo. A dor era insuportável."
Uma vez no local, ela caminhou o melhor que pôde em direção ao Sanatório Espanhol, mas parou ao pensar em como pagaria por aquele atendimento médico particular, então, também o melhor que pôde, voltou pelo mesmo caminho que tinha vindo e bateu na porta de uma vizinha de seu agressor.
"Só me lembro de dizer: 'Me ajudem, não me deixem morrer.'" A mulher a segurou no colo até Grecia perder a consciência. Ela abriu os olhos algumas horas depois, na Cruz Vermelha em Torreón.
Acordei em choque, porque em cinco minutos eu estava à beira da morte. Eu estava desesperada porque minha mãe não sabia de nada, então tirei o cateter e saí para a rua, assim mesmo, de roupão. Ninguém queria me buscar, e eu pensei que ia morrer ali e que, como ninguém sabia, o que acabaria acontecendo era que me jogariam em uma vala comum.
No final, um motorista de táxi a levou para casa.
Ela só foi ao Ministério Público em 27 de janeiro. "Começaram a me dizer que meu caso não era para eles, que havia um relacionamento amoroso com meu agressor. Eu disse que não. Me encaminharam para o Centro de Justiça e Empoderamento para Mulheres, mas também não me ajudaram lá. Mostrei meu INE (Instituto Nacional de Estatística), que declara que sou mulher, mas me disseram que o caso não era da competência deles."
Finalmente, sua queixa foi registrada. Ela foi encaminhada ao Ministério Público e avaliada por um médico legista. Quase cinco meses após o incidente, não houve progresso em seu caso.
Na semana passada, uma amiga a alertou que ela tinha ouvido dizer que seu agressor havia pago alguém para "pegá-la no colo e quebrar suas pernas".
"Não trabalhei desde então. Como profissional do sexo, me sinto muito vulnerável a ser encurralada e atacada."
No dia 10 de junho, ela retornou ao Ministério Público com a amiga para prestar depoimento sobre a conversa que ouviu.
"Os investigadores nem sabiam do meu caso. Disseram que eu tinha que renovar a queixa porque eles não tinham conhecimento."
Grecia não havia contratado um advogado porque confiava tanto na promotoria quanto no centro de empoderamento para ajudá-la. "Mas percebi que eles não estavam fazendo nada e que houve uma omissão."
Embora tenha uma medida de proteção, o que significa ter um número de emergência para ligar quando se sentir em perigo, e receba atendimento psicológico, ela fica tomada pela incerteza quando não recebe resposta.
"O que eles esperam? Que minha mãe chegue com um caixão na porta do Ministério Público para que eles me ouçam", concluiu Grecia.
O que dizem as autoridades?Embora este jornal tenha ido ao Centro de Justiça e Empoderamento da Mulher para perguntar se havia um protocolo de atendimento à população feminina trans em contextos de violência e também para saber quantas foram encaminhadas pelo Ministério Público durante 2024 e até o momento em 2025, a diretora da instituição, María Cristina Gómez Rivas, se comportou de forma displicente ao dizer que estava ocupada, e se limitou a dizer que o atendimento que mulheres como Grecia recebiam era o mesmo que recebiam todas.
Por sua vez, Carlos Rangel, chefe da Delegação de Laguna I da Procuradoria-Geral do Estado de Coahuila, informou para esta reportagem que qualquer pessoa que se identifique como mulher tem o direito de receber atendimento adequado, sem distinção. No entanto, ele admitiu que o encaminhamento dependerá do tipo de agressão e da análise jurídica do contexto.
"Se o crime for cometido por questões de gênero, ele vai para o Centro de Empoderamento; se for cometido por qualquer outra razão externa, podemos lidar com isso na delegacia", explicou ela.
Apesar disso, ela enfatizou que não deve haver barreira entre os dois órgãos: "O Centro de Empoderamento e o Ministério Público trabalham em equipe. O atendimento será prestado. Devemos garantir os direitos humanos de todas as pessoas e priorizar as vítimas, independentemente de sua identidade de gênero."
Questionada sobre quantos casos de mulheres trans vítimas de abuso foram encaminhados ao centro de empoderamento em 2024 e até o momento em 2025, Rangel disse não ter os dados, nem saber quantos processos de investigação foram abertos sobre o assunto até o momento. Ela mencionou que casos como os da Grécia ocorrem, embora raramente, mas ocorrem.
Em resposta localizada por este jornal por meio de transparência, o Poder Judiciário do Estado de Coahuila informou que nenhum processo de investigação por transfemicídio foi levado ao tribunal entre 2021 e 2024.
Em relação às sentenças, o texto afirma que nenhum caso foi resolvido em 2021 e 2024, quatro em 2022 e um em 2023 por feminicídio/transfemicídio de mulheres trans. Por fim, o texto afirma que nenhum caso de homicídio, feminicídio ou transfemicídio de mulheres trans foi registrado nesse período.
Embora o transfemicídio não seja legalmente definido em Coahuila, Carlos Rangel argumentou que há crimes que, por serem motivados por gênero, são investigados sob protocolos especializados e acarretam penas agravadas.
“A Procuradoria-Geral da República foi criada para proteger a todos. O atendimento deve ser integral, eficaz e humano. Estamos aqui para protegê-los e ser muito decisivos nas investigações. A mensagem é muito clara: em Coahuila, quem faz, paga por isso.”
Na sua opinião, parte desse apoio é garantir o atendimento contínuo: “Atualmente, temos uma equipe de plantão 24 horas por dia, 7 dias por semana, tanto no escritório distrital quanto no Centro de Empoderamento. Aqui, não há mais a questão de 'chegar até segunda porque é domingo' ou 'fecharemos às 16h'. Aqui, temos atendimento 24 horas.”
Rangel afirmou que as instruções do Procurador-Geral (Federico Fernández Montañez) foram claras: priorizar o atendimento ao cidadão e buscar formas de avançar as investigações. "Nossa obrigação é conquistar a confiança do público e fazer com que saibam que estamos aqui para servi-lo."
Em relação aos mecanismos de atendimento, ela esclareceu que protocolos com perspectiva de gênero são aplicados dependendo do tipo de crime e da motivação: "Não importa quem seja a vítima; se o contexto do crime for por um dos motivos considerados de gênero, a vítima entra no Centro de Empoderamento. Se esse motivo não existir legalmente, a vítima é encaminhada para outro órgão, mas ambos são o Ministério Público e ambos devem prestar atenção integral."
No entanto, apesar do discurso institucional que garante atenção integral, casos como o da Grécia revelam um sistema que ainda vacila quando se trata de identidades que fogem à norma. O fato de o processo dela não ter avançado, de o agressor permanecer em liberdade e de as próprias autoridades ignorarem a queixa que ela apresentou em janeiro demonstra que as barreiras não são apenas legais, mas profundamente estruturais.
E assim, neste limbo judicial e institucional, a Grécia aguarda justiça, mesmo que, como ela mesma alertou a este jornal, a espera possa custar-lhe a vida.
UMA LUTA NACIONALA falta de protocolos claros, a ignorância da equipe e a transfobia estrutural fazem com que as mulheres trans sobrevivam, em vez de viverem, em um estado de negligência e violência.
Foi assim que Cassandra Manjarrez Villalobos, ativista e defensora dos direitos humanos, analisou a situação em uma entrevista no Google Meet. Ela mencionou que esse tipo de desamparo não é novidade; ela mesma já o enfrentou e dedicou mais de 40 anos a denunciá-lo.
Sou formada em Ciências da Comunicação, estudei direção de teatro e cinema, tenho mestrado em Estudos de Gênero e doutorado em Cultura de Paz e Direitos Humanos com Perspectiva de Gênero. Mas, acima de tudo, sou uma mulher trans de 56 anos que luta pelos direitos de outras mulheres trans desde que me lembro.
De Nayarit, onde reside, ela promoveu reformas jurídicas históricas. Foi uma das impulsionadoras da Lei Paola Buenrostro, uma iniciativa que reconhece e classifica o transfemicídio como crime de ódio.
O assassinato de Paola marcou uma reviravolta no México. Ela foi assassinada diante de seu parceiro, Kenya Cuevas, que também foi ameaçado pelo mesmo agressor. Eles o prenderam... e depois o soltaram. Foi aí que começou uma luta de partir o coração: eles nem sequer liberaram seu corpo porque ela não era parente consanguínea. Como se a irmandade não bastasse para exigir dignidade para os nossos.
Cassandra contou que, após recuperar o corpo da amiga, Kenya pegou o caixão e o usou para bloquear uma avenida principal da Cidade do México.
Foi em 2016 que Kenya Cuevas testemunhou o transfemicídio de Paola Buenrostro. Um momento crucial que a levou a fundar a associação civil Casa de las Muñecas Tiresias em 2018, nomeada em homenagem a Tirésias, o único personagem da mitologia grega que foi homem e mulher na mesma vida. Ela também promoveu o primeiro abrigo para mulheres trans no México, a Casa Lar "Paola Buenrostro", em 2019.
Sobre o Quênia, Cassandra conta que sua história é dolorosa: “Ela foi expulsa quando criança, vivendo nas ruas, diagnosticada com HIV aos 13 anos, uma prisioneira, uma sobrevivente... e, ainda assim, ela se tornou uma especialista em direitos humanos dentro da prisão (onde passou 11 anos falsamente acusada de tráfico de drogas), sem nem saber ler ou escrever.”
Viver à margem motivou Kenya e Cassandra, por meio do ativismo, a construir e exigir políticas públicas que protejam seus direitos como cidadãs. Elas também exigiram que o transfemicídio seja uma questão urgente para aqueles que legislam no México.
E é uma questão tão invisível que não há nem dados oficiais ou estaduais sobre esses tipos de assassinatos.
Não há números claros sobre transfemicídios porque nem mesmo peritos forenses são treinados para reconhecer identidades trans. Eles escrevem 'masculino' no relatório, mesmo que encontrem alguém vestindo roupas femininas ou que tenha passado por cirurgia de feminização.
Nesse sentido, os dados oficiais são praticamente inexistentes. Os registros atuais são de ativistas e coletivos, refletindo um grave problema de invisibilidade institucional.
É por meio deles que podemos aprender, por exemplo, que 2024 foi o ano mais mortal no México, com 57 transfemicídios, que as mulheres trans representam mais de 50% das vítimas de crimes de ódio LGBT+ e que o México é o segundo país com mais transfemicídios no mundo, com 701 casos entre 2008 e 2023.
Nesse sentido, para Cassandra, não basta apenas visibilizá-lo; é preciso nomeá-lo. "Eles nos matam com mais crueldade. Um feminicídio não é o mesmo que um transfemicídio. A transfobia se soma à misoginia, e isso muda tudo. É essencial que o crime seja chamado pelo que é: o assassinato de uma mulher trans."
Da Casa de Bonecas Tiresias, onde colabora como coordenadora nacional de pesquisa ao lado de Kenya Cuevas, elas promoveram a Recomendação 02 da Comissão de Direitos Humanos da Cidade do México em 2019, o primeiro documento oficial a reconhecer o transfemicídio como um crime distinto.
Apenas Nayarit e a Cidade do México, como mencionado anteriormente, incorporaram esse termo em suas legislações. No restante do país, mulheres trans continuam sendo tratadas como "homens assassinados em crimes passionais".
Dizemos: o que não tem nome, não existe. Por isso é tão importante deixar claro: o transfeminicídio reflete toda a violência acumulada que vivenciamos desde a infância. Rejeição familiar, expulsão da escola, exclusão do trabalho. Muitas vezes, a faca não é necessária: a própria sociedade nos mata.
Sem protocolos, sem perspectiva e sem estatísticas reais, as instituições continuam a falhar. "Há corpos que nunca são reivindicados, identidades que nunca são reconhecidas."
A solução, diz ele, não é apenas legislação. É preciso vontade política, treinamento obrigatório, unidades de saúde decentes, linguagem correta e tratamento respeitoso.
Não somos um capricho. Não é vaidade estética. Estas são as nossas vidas. Queremos seios, sim, porque somos mulheres. Queremos hormônios, sim, porque nossos corpos precisam deles. E queremos viver, como todo mundo.
Em um país onde ser mulher já traz riscos, ser uma mulher trans significa desafiar a morte todos os dias. É por isso que Cassandra insiste: precisamos falar sobre transfemicídio. Nomeá-lo, classificá-lo e, acima de tudo, não esquecê-lo.
Talvez um dia tenhamos vergonha como sociedade. Assim como deveríamos ter vergonha de maltratar um cachorro, também deveríamos ter vergonha de como tratamos pessoas trans. Como se não fôssemos humanos. Como se não merecêssemos justiça, memória ou luto.
E a essa demanda poderia se somar o grito de Grecia Zúñiga Velazco, a mulher trans de Laguna que sobreviveu a um transfemicídio e que atualmente, sem garantias nem leis que a protejam, espera de sua trincheira desigual e invisível que seu caso ressoe e que a justiça bata à sua porta.


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